domingo, 12 de abril de 2015

O Meu Irmão

O Meu Irmão
Autor: Afonso Reis Cabral
Título: O Meu Irmão
Género: Romance
Editora: LeYa (Prémio Leya 2014 - 361 candidatos de 14 países)
1ª edição 2014
365 Páginas




Raça de Abel, dorme, come e bebe,
Deus sorri complacentemente
Baudelaire

“Eu nascera inteligente e perfeito, ele nascera inimputável e incompleto. Sendo irmãos, não podíamos ter nascido em lados mais diferentes da vida e, no entanto, um de nós conquistara o centro da vida e o outro não. O Miguel abdicara de todos os dons antes de nascer e por isso conquistara o paraíso na terra e Deus guiava-o pela mão, aceitando o que ele oferecia. Crescera anjo ferido na expressão do nosso pai. E eu acrescento: crescera anjo ferido e não sabia disso. Bastava-lhe existir para existir bem, em paz.” (p.172).
O Meu Irmão é, assim, um romance que retrata a relação do narrador com o irmão Miguel, um homem de quarenta e alguns anos portador do Síndrome de Down, pelo qual ficara responsável após a morte dos pais. “Porque a vida dele (Miguel) alimentava-se da vida deles. Não nasceu apenas deles, viveu da soma dessas duas pessoas, a mãe e o pai. Agora que não há elementos para somar, como subsiste? (p.115) As outras quatro irmãs reclamaram também Miguel para elas mas de forma titubeante e pouco assertiva, quase como descarte de consciência, apresentando cada uma a sua desculpa, o seu «apesar de»: os filhos - cinco de Constança ou os quatro de Matilde, os novos maridos - Joana ia no terceiro, ou a falta de dinheiro de Inês.
Este narrador, doutor em Letras, professor universitário de Literatura Portuguesa, divorciado e aparentemente bem resolvido com as suas amarguras e frustrações tem agora a oportunidade de aprender com Miguel a aceitar as “não resoluções” que a vida coloca e a lidar com os improvisos com que o destino nos desafia: “nunca sentirei um amor de pai pelo meu irmão, embora saiba que de certa forma é isso que me constringe. Se conseguir amá-lo mais, reconhecê-lo como meu- fingir que desde sempre o vejo como criança, imaginar que lhe peguei ao colo depois de ele nascer-talvez ultrapasse a distância em nós” (p.80, em caixa de texto). A diluição desta distância é, então o desejo mais profundo e explícito do narrador, inseguro perante este novo cenário porque as limitações de Miguel reflectem, em profundidade, a natureza das suas próprias incapacidades, das suas convulsões interiores, das suas ambições e frustrações. Afinal de contas o irmão por ter nascido assim, nasceu “com a vida feita”. Além disso, Miguel era capaz de amar incondicionalmente, de forma absoluta e total e ainda assim era profundamente dependente da protecção do irmão.
A reminiscência bíblica de Caim e Abel é um tom quente nesta relação fraterna, não fosse a epígrafe inicial de Baudelaire (a partir do poema As Negações de S. Pedro, do livro As Flores do Mal) que se oferece ao leitor na abertura da obra e que revela o itinerário desta viagem. Começamos nas primeiras páginas a caminho do Tojal, perto de Arouca e longe de tudo o resto. O Tojal é uma paisagem humana, agreste, abandonada, árida que parece infértil e estéril ao nascimento de qualquer sopro de vida natural ou emocional. Miguel e o irmão encontram-se e privam com a única família daquela aldeia: Olinda, Aníbal e Quim, o único de quatro filhos que ficou, também quarentão, também dependente como Miguel, mas com outro tipo de necessidade e que acaba por morrer. Quim era capaz de ter ambições e daí a amargura de nunca as ter concretizado, Miguel não, vivia na satisfação do que lhe podia ser dado e do que ele poderia conseguir, logo que tivesse a Luciana era quanto lhe bastava.
O amor de Luciana e Miguel foi contra todas as expectativas e convenções uma demonstração de que a deficiência e aparente diminuição não condiciona a existência de estados maiores. Inconscientemente para o narrador Luciana representava o impedimento para um amor fraterno mais consistente, uma atenção e uma prioridade de Miguel que estando viradas para ela deixariam de estar viradas para o irmão. No entanto, um incidente somente revelado nas últimas páginas do romance aproxima os três e fecha uma analepse que explica ao leitor o retorno ao Tojal e àquele espaço de tempo irreflectido, de memórias perdidas mas felizes.
A diferença e a doença são dois temas frágeis, susceptíveis e socialmente de penumbra, abordados neste romance de forma dura e madura, sem complacências, longe do politicamente correcto e dos pudores com que são silenciados. Pela voz deste irmão misantropo angustiado, solitário, que se diz com a impressão de não conseguir amar, face ao modo absoluto com que Miguel o faz, aprendemos que “existem segundas oportunidades para as primeiras impressões” (p. 117). Para dar azo a este espaço mais intimista e confessional, o autor cria dois níveis discursivos, o narrativo ficcional e um outro que resulta como uma caixa de ressonância ao amplificar as pensamentos e principalmente o que fica para além deles. Esta espaço discursivo alternativo dá profundidade à leitura, torna audíveis todas as autocríticas que por falta de coragem não passam a corpo maior: “Tudo o que é ofensa está em corpo menor”, explica o escritor. Apesar dos desabafos, destes comentários paralelos, entrecruzados, espontâneos e tantas vezes ácidos e surpreendentes, o leitor é permanentemente confrontado com a sinceridade e a gratuidade do amor que vê renascer no narrador, que comporta todas as formas, todas as idiossincrasias e diferenças: “volto para junto do Miguel quando me ocorre que é muito fácil fazermos mal às pessoas que amamos” (p 69).

Palavras-chave: Síndrome de Down, relação fraterna, Tojal, Luciana e Miguel


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