O Meu Irmão
Autor: Afonso Reis Cabral
Título: O Meu Irmão
Género: Romance
Editora: LeYa (Prémio Leya 2014 - 361
candidatos de 14 países)
1ª
edição 2014
365
Páginas
Raça de Abel,
dorme, come e bebe,
Deus sorri
complacentemente
Baudelaire
“Eu
nascera inteligente e perfeito, ele nascera inimputável e incompleto. Sendo
irmãos, não podíamos ter nascido em lados mais diferentes da vida e, no
entanto, um de nós conquistara o centro da vida e o outro não. O Miguel
abdicara de todos os dons antes de nascer e por isso conquistara o paraíso na
terra e Deus guiava-o pela mão, aceitando o que ele oferecia. Crescera anjo
ferido na expressão do nosso pai. E eu acrescento: crescera anjo ferido e não
sabia disso. Bastava-lhe existir para existir bem, em paz.” (p.172).
O Meu Irmão é, assim, um romance que retrata
a relação do narrador com o irmão Miguel, um homem de quarenta e alguns anos portador
do Síndrome de Down, pelo qual ficara responsável após a morte dos pais. “Porque
a vida dele (Miguel) alimentava-se da vida deles. Não nasceu apenas deles,
viveu da soma dessas duas pessoas, a mãe e o pai. Agora que não há elementos
para somar, como subsiste? (p.115) As outras quatro irmãs reclamaram também
Miguel para elas mas de forma titubeante e pouco assertiva, quase como descarte
de consciência, apresentando cada uma a sua desculpa, o seu «apesar de»: os
filhos - cinco de Constança ou os quatro de Matilde, os novos maridos - Joana
ia no terceiro, ou a falta de dinheiro de Inês.
Este
narrador, doutor em Letras, professor universitário de Literatura Portuguesa,
divorciado e aparentemente bem resolvido com as suas amarguras e frustrações
tem agora a oportunidade de aprender com Miguel a aceitar as “não resoluções”
que a vida coloca e a lidar com os improvisos com que o destino nos desafia: “nunca
sentirei um amor de pai pelo meu irmão, embora saiba que de certa forma é isso
que me constringe. Se conseguir amá-lo mais, reconhecê-lo como meu- fingir que
desde sempre o vejo como criança, imaginar que lhe peguei ao colo depois de ele
nascer-talvez ultrapasse a distância em nós” (p.80, em caixa de texto). A
diluição desta distância é, então o desejo mais profundo e explícito do
narrador, inseguro perante este novo cenário porque as limitações de Miguel
reflectem, em profundidade, a natureza das suas próprias incapacidades, das
suas convulsões interiores, das suas ambições e frustrações. Afinal de contas o
irmão por ter nascido assim, nasceu “com a vida feita”. Além disso, Miguel era
capaz de amar incondicionalmente, de forma absoluta e total e ainda assim era profundamente
dependente da protecção do irmão.
A
reminiscência bíblica de Caim e Abel é um tom quente nesta relação fraterna,
não fosse a epígrafe inicial de Baudelaire (a partir do poema As Negações de S.
Pedro, do livro As Flores do Mal) que se oferece ao leitor na abertura da obra
e que revela o itinerário desta viagem. Começamos nas primeiras páginas a
caminho do Tojal, perto de Arouca e longe de tudo o resto. O Tojal é uma
paisagem humana, agreste, abandonada, árida que parece infértil e estéril ao
nascimento de qualquer sopro de vida natural ou emocional. Miguel e o irmão
encontram-se e privam com a única família daquela aldeia: Olinda, Aníbal e
Quim, o único de quatro filhos que ficou, também quarentão, também dependente
como Miguel, mas com outro tipo de necessidade e que acaba por morrer. Quim era
capaz de ter ambições e daí a amargura de nunca as ter concretizado, Miguel
não, vivia na satisfação do que lhe podia ser dado e do que ele poderia
conseguir, logo que tivesse a Luciana era quanto lhe bastava.
O
amor de Luciana e Miguel foi contra todas as expectativas e convenções uma
demonstração de que a deficiência e aparente diminuição não condiciona a
existência de estados maiores. Inconscientemente para o narrador Luciana
representava o impedimento para um amor fraterno mais consistente, uma atenção
e uma prioridade de Miguel que estando viradas para ela deixariam de estar
viradas para o irmão. No entanto, um incidente somente revelado nas últimas
páginas do romance aproxima os três e fecha uma analepse que explica ao leitor
o retorno ao Tojal e àquele espaço de tempo irreflectido, de memórias perdidas
mas felizes.
A
diferença e a doença são dois temas frágeis, susceptíveis e socialmente de
penumbra, abordados neste romance de forma dura e madura, sem complacências,
longe do politicamente correcto e dos pudores com que são silenciados. Pela voz
deste irmão misantropo angustiado, solitário, que se diz com a impressão de não
conseguir amar, face ao modo absoluto com que Miguel o faz, aprendemos que “existem
segundas oportunidades para as primeiras impressões” (p. 117). Para dar azo a
este espaço mais intimista e confessional, o autor cria dois níveis
discursivos, o narrativo ficcional e um outro que resulta como uma caixa de
ressonância ao amplificar as pensamentos e principalmente o que fica para além
deles. Esta espaço discursivo alternativo dá profundidade à leitura, torna
audíveis todas as autocríticas que por falta de coragem não passam a corpo
maior: “Tudo o que é ofensa está em corpo menor”, explica o escritor. Apesar
dos desabafos, destes comentários paralelos, entrecruzados, espontâneos e
tantas vezes ácidos e surpreendentes, o leitor é permanentemente confrontado
com a sinceridade e a gratuidade do amor que vê renascer no narrador, que
comporta todas as formas, todas as idiossincrasias e diferenças: “volto para
junto do Miguel quando me ocorre que é muito fácil fazermos mal às pessoas que
amamos” (p 69).
Palavras-chave: Síndrome de Down, relação
fraterna, Tojal, Luciana e Miguel
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