Autor: Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta, Maria
Velho da Costa
Título: Novas Cartas Portuguesas
Género: não integrável em nenhum género particular
Editora: Dom Quixote - LeYa
2ªedição anotada (10ªedição do texto) 2014
415 páginas
Elle flotte, elle hésite,
elle est femme
Racine
Minhas irmãs: mas o que
pode a literatura?
Ou antes: o que podem as
palavras?
1/6/71
Resumo
Em
Maio de 1971, três mulheres portuguesas fizeram um pacto literário que deu
origem a uma das obras mais difundidas e traduzidas por todo o mundo e que
deixa na História da Literatura e da Cultura Portuguesas uma marca indelével de
valor incomensurável. O cerco ideológico-político que restringe as mulheres
entre o que lhes é consentido e o que é lhes negado é mote para uma intervenção
cívica, social, política e estética, na qual a causa feminina se digladia numa
semelhante contradição entre a necessidade de alcançar a igualdade para poder
conquistar o direito à diferença e na
descoberta da sua identidade. A obra oferece-se pelo prefácio de Maria de
Lourdes Pintasilgo, escrito em 1980, através do seu olhar acutilante e
certeiro, do seu saber enciclopédico e das suas palavras tão magistralmente
cerzidas e profundamente interventivas.
Em
Abril de 1972, o livro seria publicado com a chancela dos Estúdios Cor, com a
direcção literária de Natália Correia, que mesmo tendo sido instada a cortar
partes conseguiu publicar a obra na íntegra. Três dias após ter sido publicada
a obra, a censura de Marcelo Caetano ceifou-a da mão colectiva, tendo sido imediatamente
aberto um processo judicial contra as três autoras por «conteúdo insanavelmente
pornográfico e atentatório contra a moral pública».
Imbuídas
de um espírito visionário e ousado, uma das autores pediu a um amigo que
levasse, clandestinamente, as Novas Cartas para o núcleo de feministas
em Paris, que rapidamente tomou a iniciativa de as traduzir e esprair por
outros pontos do mundo. A partir deste momento, o processo mediatizara-se
internacionalmente, chamando a atenção do mundo para Portugal e para o cenário
político que se atravessava.
O
caso das «três Marias», como passaria a ser conhecido, levantou uma onda de
solidariedade entre a comunidade
intelectual, instigou protestos e manifestações que tomariam proporções
inimagináveis como a cobertura do julgamento por meios de comunicação - Le
Monde, New York Times, Nouvel Observateur, L'Express, Libération e muitos
outros canais norte americanos - passando pela defesa pública das autoras pelas
vozes de Simone de Beauvoir, Marguerite Duras, Doris Lessing, Christiane
Rochefort, Iris Murdoch. O caso chegou mesmo a ser votado em Junho de 1973,
numa Conferência da National Organization for Women (NOW) em Boston,
como a primeira causa feminista internacional. Portugal estava no palco do
mundo e o seu regime político era agora alvo de escrutínio mediático.
Este
livro escrito a seis mãos, formado por 120 textos que se entertecem, dialogam,
relacionam e, acima de tudo, que se questionam e complementam internamente –
entre cartas, poemas, relatórios, textos narrativos, ensaios, citações –
retratam destemidamente uma sociedade definida pela guerra colonial, pela
emigração, pela violência e extemporânea dos direitos das mulheres e da
simetria social. As Novas Cartas foram por isso um libelo contra a ideologia vigente
no período pré-25 de Abril. Na concepção e composição da obra, as três Marias
inspiraram-se no romance epistolar Lettres Portugaises, publicado
anonimamente por Claude Barbin em 1669, apresentado com uma tradução também
anónima de cinco cartas de amor endereçadas a um oficial francês por Mariana
Alcoforado, uma jovem freira enclausurada no convento de Beja. Estas mesmas
cartas seriam publicadas 300 anos mais tarde, 1969, em edição bilingue pela
Assírio Alvim sob o título de Cartas Portuguesas, com a tradução de
Eugénio de Andrade. Entendemos agora por que razão foram estas designadas de
Novas Cartas ainda que o adjectivo implique muitas outras considerações.
Estas
três Marias comprometidas desde sempre com uma forte dimensão política,
desafiaram os poderes vigentes, (re)desenharam os papéis sociais e sexuais das
mulheres, fundaram um neofeminismo de vanguarda, desestabilizam as noções fixas
de autoria e de autoridade, reequacionaram a noção de género literário, na
senda da ruptura e da descontrução de paradigmas impostos. Gritaram em
unissono: «Ninguém me peça, tente, exija, que regresse à clausura dos outros»
mas sob a permanente constatação de que «definimo-nos para aqueles que nos amam
pelos nosso limites de carne e de pele, de saber e de sentir, o contorno, a
forma, é o que nos torna palpáveis e compreensíveis». E uma interrogação fica
sempre em suspenso: «chegará tempo de amor, em que dois se amem, sem que uso ou
utilidade mútua se vejam e procurem, mas, apenas prazer, prazer sí, no dar e no
receber?
Mariana
Alcoforado, uma freira de Beja, é o móbil destas Novas Cartas, enquanto
estereótipo da mulher abandonada e impedida de viver um amor pelo cavaleiro de
Chamilly, e em torno da qual gravitam muitas outras personagens, muitas outras
histórias e desventuras, cruamente descritas e amargamente sentidas. Sente-se
nestas Novas Cartas o contratempo de um nova geografia social e humana, a
precocidade de um novo mapa de entendimento de uma humanidade comum. Não
se reduzem apenas a uma luta feminista
pela afirmação e liberdade das mulheres, nem apenas a um retrato histórico das
movimentações de um mundo imperial e de dominação, nem tão pouco a uma mera
descrição dos impulsos e vontades sexuais, ou a simples grito estético e
inconformado de três escritoras. Mas é, de facto, tudo isto amalgamado com tudo
o resto que se possa afigurar aos olhos de cada leitor.
Palavras-chave: Neofeminismo, «três Marias», Mariana
Alcoforado, imperialismo, machismo.
Sem comentários:
Enviar um comentário