terça-feira, 14 de abril de 2015

Outras Cores

Autor: Orham Pamuk
Título: Outras cores
Editora: Editorial Presença
Género: Ensaios
Lisboa 2009
424 páginas


Resumo: Numa recente visita a Portugal para receber o Prémio Europeu Helena Vaz da Silva, pelo seu reconhecido contributo para a promoção e valorização do património cultural europeu, Orhan Pamuk deixou a seguinte mensagem: “A herança cultural europeia não se deve limitar à preservação dos seus monumentos mas também à preservação dos seus valores fundamentais e a Europa deve ter uma discussão séria sobre esses mesmos valores fundamentais”. Na verdade, as preocupações de Pamuk, situam-se sempre em questões fronteiriças, limístrofes e na demanda pela identidade de um país que divide o Ocidente e o Oriente, nesta permanente dialéctica entre a modernidade europeia e a tradição muçulmana.
Arquitecto e Jornalista de formação, apesar de nunca ter exercido nenhuma das duas actividades, Orhan Pamuk mantém o olhar crítico sobre a arquitectura da sociedade e o sentido apurado na análise e denúncia dos seus problemas. Nesta colectânea de reflexões, desabafos, pensamentos e confissões, redigidos em formato de ensaio, o Nóbel turco revela uma postura desalinhada, dissonante, por vezes amarga, inerente a qualquer análise lúcida da realidade. Esta obra divide-se em seis grandes grupos: i) Vida e Preocupações, ii) Livros e Leituras; iii) A Política, a Europa e outros problemas por sermos nós mesmos, iv) Os meus Livros são a minha vida e v) Outras cidades, outras civilizações. Nem sempre estas divisões correspondem a arrumações conceptuais estanques porque sentimos ao longo da leitura que a sua vida pessoal com a mulher e a filha o levam a questionar todas as outras questões exógenas, históricas e circunstanciais, como se de uma força centrípeta se tratasse, que outorga coesão e unidade ao foco das suas preocupações.
Quando um livro é assim concebido, oferece-se aos olhos do leitor dando-lhe a possibilidade de participar de forma subjectiva, livre e pessoal, procurando resposta e reflexão para as suas próprias curiosidades e inquietações. Realço, por isso, dois ensaios muito particulares, que se relacionam, que se complementam e que se justificam mutuamente, talvez por isso escolhidos para abrir e encerrar o livro.
A Mala do meu pai é o título da conferência proferida no momento de entrega do prémio Nobel na Suécia. E porque nunca chegamos ao topo da montanha sem reconhecer o caminho que foi trilhado até lá, o escritor fala sobre a mala e os pertences escritos que seu pai lhe deixou e com isso aproveita o pretexto para discorrer sobre a sua relação com a Literatura e o seu (re)e auto conhecimento nela pois “o escritor que se fecha num quarto e que, antes de mais, viaja ao interior de si mesmo, descobrirá com o passar dos anos a eterna regra de literatura: ter de possuir a capacidade de contar as suas histórias como se fossem as de outros e contar as de outros como se fossem as suas". Neste discurso transparente honesto, íntegro mas também nostálgico, temeroso e revoltado, Orhan Pamuk confessa as razões por que escreve e alguns desses argumentos são bastante desarmantes e intimistas, por vezes num tom algo amargurado: “Eu escrevo porque não consigo fazer um trabalho normal como as outras pessoas. Escrevo porque estou zangado com todos vós, porque estou zangado com toda a gente. Escrevo porque só consigo participar na vida real transformando-a. Escrevo porque gosto da glória e do interesse que a escrita nos traz. Escrevo para estar só. Talvez escreva por querer compreender porque razão estou tão, tão zangado com todos vós, tão, tão zangado com toda a gente. Escrevo porque gosto de ser lido. Escrevo porque é entusiasmante transformar todas as belezas e riquezas do mundo em palavras. Escrevo porque nunca consegui ser feliz. Escrevo para ser feliz”. 
Numa viagem regressiva até ao primeiro texto do livro intitulado O Autor implícito, Pamuk afirma a este propósito que «a literatura não permite a um tal escritor pensar que salva o mundo; em vez disso dá-lhe a hipótese de não desperdiçar o dia. E todos os dias são difíceis especialmente difíceis quando não se escreve».
Escrever é sempre um exercício paciente, um trabalho permanente e persistente, sem espaço para resiliências e onde deve haver espaço para o imprevisto, para o inusitado e para a surpresa. É pelo facto do escritor se sentir surpreendido pela sua própria escrita que o torna actor depois de ter sido agente da construção literária. Tal como na vida, em qualquer viagem, antes de partir fazemos planos: escolhemos a história, determinamos os portos a visitar, as cargas a transportar, calculamos tempos e distâncias, cartografamos o itinerário, o caminho dos sonhos e das vontades. Contudo, o vento surge dos quadrantes mais imprevisíveis e decide mudar a direcção e introduzir novas coordenadas. Quando ele acalma, encontramo-nos em lugares que nunca esperávamos conhecer, em águas calmas e enevoadas e percebemos que, tendo feito muito pouco para isso, fizemos avançar o romance, a viagem, a vida.  


Palavras-Chave: Identidade, Ocidente/Oriente, Viagens exteriores e interiores, Escrita

domingo, 12 de abril de 2015

O Meu Irmão

O Meu Irmão
Autor: Afonso Reis Cabral
Título: O Meu Irmão
Género: Romance
Editora: LeYa (Prémio Leya 2014 - 361 candidatos de 14 países)
1ª edição 2014
365 Páginas




Raça de Abel, dorme, come e bebe,
Deus sorri complacentemente
Baudelaire

“Eu nascera inteligente e perfeito, ele nascera inimputável e incompleto. Sendo irmãos, não podíamos ter nascido em lados mais diferentes da vida e, no entanto, um de nós conquistara o centro da vida e o outro não. O Miguel abdicara de todos os dons antes de nascer e por isso conquistara o paraíso na terra e Deus guiava-o pela mão, aceitando o que ele oferecia. Crescera anjo ferido na expressão do nosso pai. E eu acrescento: crescera anjo ferido e não sabia disso. Bastava-lhe existir para existir bem, em paz.” (p.172).
O Meu Irmão é, assim, um romance que retrata a relação do narrador com o irmão Miguel, um homem de quarenta e alguns anos portador do Síndrome de Down, pelo qual ficara responsável após a morte dos pais. “Porque a vida dele (Miguel) alimentava-se da vida deles. Não nasceu apenas deles, viveu da soma dessas duas pessoas, a mãe e o pai. Agora que não há elementos para somar, como subsiste? (p.115) As outras quatro irmãs reclamaram também Miguel para elas mas de forma titubeante e pouco assertiva, quase como descarte de consciência, apresentando cada uma a sua desculpa, o seu «apesar de»: os filhos - cinco de Constança ou os quatro de Matilde, os novos maridos - Joana ia no terceiro, ou a falta de dinheiro de Inês.
Este narrador, doutor em Letras, professor universitário de Literatura Portuguesa, divorciado e aparentemente bem resolvido com as suas amarguras e frustrações tem agora a oportunidade de aprender com Miguel a aceitar as “não resoluções” que a vida coloca e a lidar com os improvisos com que o destino nos desafia: “nunca sentirei um amor de pai pelo meu irmão, embora saiba que de certa forma é isso que me constringe. Se conseguir amá-lo mais, reconhecê-lo como meu- fingir que desde sempre o vejo como criança, imaginar que lhe peguei ao colo depois de ele nascer-talvez ultrapasse a distância em nós” (p.80, em caixa de texto). A diluição desta distância é, então o desejo mais profundo e explícito do narrador, inseguro perante este novo cenário porque as limitações de Miguel reflectem, em profundidade, a natureza das suas próprias incapacidades, das suas convulsões interiores, das suas ambições e frustrações. Afinal de contas o irmão por ter nascido assim, nasceu “com a vida feita”. Além disso, Miguel era capaz de amar incondicionalmente, de forma absoluta e total e ainda assim era profundamente dependente da protecção do irmão.
A reminiscência bíblica de Caim e Abel é um tom quente nesta relação fraterna, não fosse a epígrafe inicial de Baudelaire (a partir do poema As Negações de S. Pedro, do livro As Flores do Mal) que se oferece ao leitor na abertura da obra e que revela o itinerário desta viagem. Começamos nas primeiras páginas a caminho do Tojal, perto de Arouca e longe de tudo o resto. O Tojal é uma paisagem humana, agreste, abandonada, árida que parece infértil e estéril ao nascimento de qualquer sopro de vida natural ou emocional. Miguel e o irmão encontram-se e privam com a única família daquela aldeia: Olinda, Aníbal e Quim, o único de quatro filhos que ficou, também quarentão, também dependente como Miguel, mas com outro tipo de necessidade e que acaba por morrer. Quim era capaz de ter ambições e daí a amargura de nunca as ter concretizado, Miguel não, vivia na satisfação do que lhe podia ser dado e do que ele poderia conseguir, logo que tivesse a Luciana era quanto lhe bastava.
O amor de Luciana e Miguel foi contra todas as expectativas e convenções uma demonstração de que a deficiência e aparente diminuição não condiciona a existência de estados maiores. Inconscientemente para o narrador Luciana representava o impedimento para um amor fraterno mais consistente, uma atenção e uma prioridade de Miguel que estando viradas para ela deixariam de estar viradas para o irmão. No entanto, um incidente somente revelado nas últimas páginas do romance aproxima os três e fecha uma analepse que explica ao leitor o retorno ao Tojal e àquele espaço de tempo irreflectido, de memórias perdidas mas felizes.
A diferença e a doença são dois temas frágeis, susceptíveis e socialmente de penumbra, abordados neste romance de forma dura e madura, sem complacências, longe do politicamente correcto e dos pudores com que são silenciados. Pela voz deste irmão misantropo angustiado, solitário, que se diz com a impressão de não conseguir amar, face ao modo absoluto com que Miguel o faz, aprendemos que “existem segundas oportunidades para as primeiras impressões” (p. 117). Para dar azo a este espaço mais intimista e confessional, o autor cria dois níveis discursivos, o narrativo ficcional e um outro que resulta como uma caixa de ressonância ao amplificar as pensamentos e principalmente o que fica para além deles. Esta espaço discursivo alternativo dá profundidade à leitura, torna audíveis todas as autocríticas que por falta de coragem não passam a corpo maior: “Tudo o que é ofensa está em corpo menor”, explica o escritor. Apesar dos desabafos, destes comentários paralelos, entrecruzados, espontâneos e tantas vezes ácidos e surpreendentes, o leitor é permanentemente confrontado com a sinceridade e a gratuidade do amor que vê renascer no narrador, que comporta todas as formas, todas as idiossincrasias e diferenças: “volto para junto do Miguel quando me ocorre que é muito fácil fazermos mal às pessoas que amamos” (p 69).

Palavras-chave: Síndrome de Down, relação fraterna, Tojal, Luciana e Miguel


Uma menina está perdida no seu século à procura do pai

Autor: Gonçalo M. Tavares
Título: Uma menina está perdida no seu século à procura do pai
Género: Romance
Editora: Porto Editora
1ª edição 2014
194 Páginas





Resumo: Gonçalo M. Tavares tem um fascínio, cada vez mais explícito nas suas obras, pelo tempo e pela velocidade dos acontecimentos e da vida, comprovando que um livro que acompanha o ritmo do mundo pouco tem a oferecer. Cada livro dita uma (a sua) velocidade de leitura e o novo romance de Tavares pede-nos “mais devagar” porque as coordenadas quase nunca são lineares e os percursos quase sempre entrecruzados. A velocidade não é constante (porque também não é isso que se espera da vida), os acontecimentos distribuem-se por vários ritmos, que detêm a nossa atenção e exigem pausas recorrentes.
O cenário é a Alemanha do pós Segunda Guerra e nas primeiras páginas encontramo-nos com Hanna, uma menina de quatorze anos com síndrome de Down, que acaba de ser acolhida por uma instituição. Pouco se sabe acerca desta menina, de onde vem ou quem é, apontamentos que no fundo se tornam absolutamente acessórios para o enredo quando a única informação que importa ao leitor é saber que esta menina anda à procura do seu pai.
Marius, que a recebe na instituição, vai-se responsabilizando por ela como se se assumisse um pai substituto. A partir daquele momento tornam-se inseparáveis, acompanham-se em viagens, aventuras e em várias casualidades que os levam a cruzar-se com muitas personagens: Josef Berman – um fotógrafo obstinado por animais com deficiências -; Agam a quem pediam para fazer inscrições públicas de códigos secretos. O ofício deste excêntrico era esta estranha obsessão de guardar e revelar, ao mesmo tempo, os segredos dos outros, desde uma pequena mensagem da amante num objecto da sala de um senhor qualquer, até às frases veladas do sino da cidade; Fried Samm, um de quatro irmãos que fixavam cartazes de mobilização social.
Hanna e Marius, nas suas peripécias por Berlim, conheceram também Raffaela e Moebius, donos do hotel, onde ficaram hospedados no quarto chamado Auschwitz. Nesse hotel conheceram ainda Terezin, um velho que que lhes contara a história dos sete judeus, os sete «Séculos XX». Estes sete homens tinham como função memorizar sem qualquer falha, toda a História do século XX – levando o exercício à exaustão - ao mais pequeno pormenor sobre tudo o que se tinha passado nos Campos de Concentração.
Quando chegou à instituição, Hanna trazia apenas um objecto que Marius levou a um antiquário na expectativa que lhe revelasse alguma informação. Vitrius pouco correspondeu a esta expectativa mas com ele ficaram a conhecer um relógio do século XIX com dois mostradores utilizado nas fábricas de tecidos em Inglaterra. Um dos mostradores media o tempo normal, media o tempo fora da fábrica como todos os outros relógios, portanto não saía do mundo. Já o segundo mostrador era típico da revolução industrial, avançava de acordo com a velocidade da roda de água que accionava as máquinas. Se os homens não mantivessem o ritmo constante da água, repercutia-se no ritmo das máquinas e, consequentemente, o relógio retardava: marcava apenas o tempo do trabalho. Na verdade, a passagem do tempo é bem mais justa se se fizer depender do nosso esforço para cumprir um determinado objectivo. Vitrius preservava ainda uma invulgar “herança”, iniciada pelo seu avó e continuada pelo seu pai, uma tarefa que consistia em desenvolver sequências numéricas com intervalos de dois números.
Por sugestão de Vitrius chegaram até Grube, um velho historiador que defendia a História como um elemento vivo, que mudava de posição, ora acelerava, ora diminuía de ritmo, um elemento com peso constante – uma massa que de um ponto para o outro se arrasta ou acelera, com o centro de gravidade variável.
Uma menina perdida no seu século à procura do pai representa, acima de tudo, a fragilidade e a limitação que temos em encontrar identidades e em descobrir as (nossas) raízes que nos definem e orientam. Ao mesmo tempo, sentimos esta ânsia sôfrega de deixar marcas e rastros para que os outros nos possam encontrar (ou até para nos que voltemos a reencontrar com nós mesmos), para que não nos percamos num tempo que é nosso e numa colectividade à qual pertencemos.
As noções de Tempo, Memória e História são indissociáveis entre si e principalmente entre as personagens, são no fundo os pilares estruturais na demanda de nós mesmos - simples objectos devir, precários e volúveis. No fundo estamos vivos apenas para isto: aceitar o que vai acontecendo porque aconteça o que acontecer o importante é avançar…sem nunca parar.




Estrutura do romance
I O rosto
1.      Um Rosto
2.      AS fichas
3.      Um fotógrafo de animais
II A Revolução – Dizer Adeus
1.      O Cartaz
2.      Fried Samm, a Revolução
3.      Como ajudar?
4.      Manual de Instruções
5.      Dizer Adeus
III O Hotel
1.      O hotel
2.      O quarto
3.      Os sorrisos na rua
4.      Comer
IV Subir e Descer
1.      Vertigens
2.      A Visita ao Antiquarius Vitrius
3.      Dom Quixote
4.      A Mão
5.      Os dois ponteiros
6.      A descida
7.      Gritar
V O nome
1.      A Forma do Hotel
VI a Visita Súbita
1.      Nova Visita a Vitrius
2.      A Terefa da Família ( Herança)
3.      Continuar
4.      O olho
5.      Regresso ao Hotel
VII O Pesadelo
1.      Um pesadelo
VIII No Hotel, em volta do Hotel, Perdidos no Hotel
1.      Os hóspedes
2.      Perdidos no Hotel
3.      AS costas
IX Procurar uma Planta
1.      O olho vermelho
2.      Uma fotografia
3.      Procurando uma planta
X Peso e Música
1.      A Importância do Peso
2.      Um passeio com Terezin
3.      Algumas questões sobre bem-estar
XI Outro pesadelo
1.      Marius
XII Sete Séculos XX
1.      Os Séculos XX
2.      Os Séculos XX em Moscovo
XIII Pequenas Palavras
1.      Olho vermelho e o cartão
2.      Olho vermelho, o Sino
XIV Hansel e Gretel
1.      Deixar Pistas
2.      Hanna e Marius no Comboio
3.      Josef Berman aparece
XV A fuga
1.      Esconderijo
2.      Regressar a Berlim
3.      Nada
4.      A Multidão, finalmente


Um Amor Feliz

Autor: David Mourão-Ferreira
Título: Um Amor Feliz
Editora: Editorial Presença
15ªEdição de 2002
299 páginas






Sinopse

David Mourão Ferreira inspira-se na matriz dos Amores do autor latino Ovídio (43 a.C – 18 d.C). O cenário é, igualmente, decalcado a partir de uma Roma exuberante, cuja frivolidade e fausto são as condições sine qua non e o humus perfeito para a fertilidade de determinados hábitos e para uma plêiade de subterfúgios amorosos. Nesta antecâmara, tece-se um enredo tão sedutor quanto enigmático, sustentado por jogos, expedientes e enganos.
            O fio condutor é uma mulher, envolta num manto de secretismo, aparentemente oculta, gramaticalmente comum, enganosamente anónima, a Y. A sigla, convertida em nome de mulher, graficamente erótica que tudo precipita e inicia, é a metáfora colectiva dos amantes. Y converteu-se na incógnita da vida do artista plástico, Clown, quando este descobriu que Arte, Amor e Mulher tecem a fórmula de Um Amor (quase) Feliz, com o género feminino sempre dominante.
O romance apresenta uma estrutura de quarenta e sete capítulos, parcialmente desconexos e isolados mas tece-se de forma coerente, nas suas teias de erotismo e sedução. A obra suscita várias leituras e mergulha o leitor num universo amoroso cambiante e indecifrável, num jogo dialéctico de luz e sombra, consentimento e infracção, enigma e revelação.  A intensa e arrebatadora história de paixão entre estes dois amantes tem como pano de fundo uma Lisboa eclética e frívola, com as suas movimentações sociais e festivas, nos esgares titubeantes de uma elite diplomática.
O romance encerra de forma inconclusiva, circular, aberta porque é na intermitência de duas possibilidades que se abre o espaço para a vontade e para a ilusão de Um Amor Feliz. Clown confirma com Y a máxima ovidiana: «quanto mais guarda se faz ao corpo, mais adúltera é a alma, a mulher só é verdadeiramente fiel quando tem a liberdade de o não ser[1]».

PALAVRAS-CHAVE: Um Amor Feliz. Amores Ovidianos. Adultério, Jogo de sedução. Y.



[1]Carlos Ascenso André, (trad) Amores de Ovídio, Livros Cotovia e Carlos Ascenso André, Lisboa, 2006, p 20.

Siddhartha

Autor: Hermann Hesse
Título: Siddhartha
Editora: LeYa
Género: Romance
153 páginas, 2011






Resumo:
            O nobel alemão Hermann Hesse presenteia-nos com Siddhartha (1922), um romance que coloca a tónica no dualismo da vida activa e da atitude contemplativa, numa constante dialéctica de questionação das escolhas e dos caminhos, na esteira da celebração de um certo misticismo oriental. O leitor vai viajando, nestas páginas sinestésicas, pelos labirintos e complexidades da alma humana do protagonista, nascido na Índia, no século VI a.C.
            Siddhartha é filho de um brâmane e cresceu isolado das misérias do mundo, gozou de uma existência calma e de uma vida luxuosa, até ao momento em que decidiu abdicar de tudo isso, para se envolver e iniciar numa viagem existencial, na senda da descoberta das (suas) verdades. O livro começa com a sagacidade de um jovem que procura ficar vazio de sede, vazio de desejo, vazio de sonho, vazio de alegria e de tristeza pois acreditava que esvaziando um Eu dominado por impulsos e  inclinações, poderia fazer emergir o mais profundo do Ser. Juntamente com o seu amigo Govinda, desprende-se das amarras circunstanciais, disposto a beber de preceitos sábios e de doutrinas irrefutáveis. Nesta caminhada, as escolhas dos dois samanas divergem e seguem, por isso, rumos diferentes.
            Siddhartha sempre honrara 3 directrizes norteadoras - Jejuar, Esperar e Pensar - e movido pela avidez e insatisfação das doutrinas cruza-se com várias pessoas que lhe vão dar a conhecer um outro lado da vida e do mundo, diametralmente opostos daqueles que ele conhecia. Com Kamala, o Brâmane conhecera os prazeres do corpo e dos sentidos, sem nunca se entregar à cortesã inteiramente; com Kamaswami, um afamado comerciante, aprendera a agradar a cobiça e a ganância sem nunca se deixar levar por elas, ou pelo menos acreditando nessa ilusão. No entanto, o tempo revelou-lhe o contrário pois ninguém é incorrompível até ser tentado e Siddhartha deixara-se deslumbrar, deixa-se seduzir por aquelas que eram as efemeridades da vida.
            Certo dia, chegando próximo de um rio viu reflectido na água o vazio da sua alma e nesse momento, percebendo que a sua vida se tinha esgotado, quis entregar-se à morte como quem quer parar o fluir perene do tempo e da vida. De repente, ouve reverberar dentro de si um «Om» sagrado que tanto significa «Completo» como «Perfeito» e que desperta o seu espirito entorpecido. Nas margem desse rio conhece Vasudeva, o barqueiro, com quem durante os anos seguintes convive e aprende. Os anos foram passando sem que ninguém os contasse e por altura da morte de Buda, o Sublime, na hora da sua passagem para a liberdade eterna, Kamala dirige-se com o seu filho, para o lugar onde estava a morrer o Santo agora moribundo. Entretanto, Kamala é mordida por uma cobra e morre nos braços de Siddhartha, que rapidamente reconhece no menino da cortesã, o seu filho. Com este filho Siddhartha inicia nova viagem, agora pela incondicionalidade de um sentimento sem reciprocidade mas que ainda assim lhe mostra o sentido real da vida.
O livro encerra com um reencontro e com uma conversa profunda de Siddhartha com o seu amigo de sempre Govinda, no reflexo um do outro reconhecem as suas próprias escolhas, tendo o rio como pano de fundo, esse rio que é reminiscência e lembrança de que nunca nos banhamos duas vezes na mesma água. Siddhartha confessa-se e assume que o contrário de qualquer verdade é tão verdadeiro quanto essa mesma verdade e que tudo é metade, em tudo falta a totalidade, integralidade e unidade. O Mundo sempre se dividira em Sansara e Nirvana, ilusão e verdade, sofrimento e libertação. O brâmane percebera que a sua imensa avidez e amor por tudo, o distanciaram do equilibrio, dispersaram-no de um foco. Foi preciso cometer muitos pecados e tantas loucuras, enfrentar misérias, desilusões e sofrimentos para poder recomeçar: afinal a viagem mais sagrada e regenedora do Homem é sempre aquela que o leva por um périplo a interior, na descoberta de si mesmo.


Palavras-Chave: misticismo oriental, vida activa versus atitude contemplativa, libertação, equilíbrio.

O Senhor Calvino

Autor: Gonçalo M. Tavares
Título: O Senhor Calvino
Editora: Caminho
Género: Colectânea de fragmentos
Série: O Bairro
2ªedição, 2005
71 páginas





Resumo
Integrante da série O Bairro[1], o Senhor Calvino (2005) é apresentado por um narrador omnipresente ao longo de vinte episódios autónomos e sem articulação na sua estrutura externa. No entanto, a sucessão destes fragmentos, literariamente simples mas filosoficamente profundos, vai construindo na sua estrutura interna uma tecitura lógica e consistente acerca desta personagem, que se relaciona com o mundo numa postura de objectivação e análise. Qualquer circunstância é mote e pretexto para deter a atenção do Senhor Calvino numa reflexão curta mas complexa sobre o existencialismo, a acção humana, a liberdade, o livre arbítrio, a capacidade de escolha e a sua relação com o Espaço e o Tempo. O mérito da obra reside neste convite à leitura por diferentes níveis de análise, associado à liberdade oferecida pelo fragmento de podermos entrar e sair em qualquer página, sem que se imponha como ordem obrigatória o começo do início para o fim. O livro abre com uma triologia de sonhos, o primeiro dos quais revela, desde logo, uma atitude calma, corajosa e perseverante do Senhor Calvino face a uma situação de queda e vertigem. O exercício analítico vai-se amplificando ao longo dos episódios com a apreensão e compreensão das coisas mais simples do mundo como seja a constataçaõ de que o pardal, desde o seu antepassado Archaeopeteryx, sabe que a única forma de não cair é voar, da mesma forma que a natureza do Homem é hoje aquilo que sempre foi e que continuará a ser. Com uma colher de café, Calvino propõe-se transportar 50 quilos de mundo de um ponto A para o ponto B, a 15 metros de distância, e mesmo tendo uma pá de engenharia por perto sabe que as grandes coisas só se apre(e)ndem pelos pequenos gestos. Para este Senhor, é através do entendimento isolado das partes que se alcança o sentido integral do sistema e por isso, a Fìsica e a Lógica colocam-se ao serviço da Ética na construção de um código de conduta e de identidade do indivíduo, na descoberta de um modus vivendi sábio, que passa pelo domínio das circunstâncias adversas e pela superação de si mesmo. «O Senhor Calvino lembrava-se bem, aliás, da infelicidade que acontecera a um seu amigo que, como tinha uma paralisia facial, estava sempre a rir, acontecesse o que acontecesse».

PALAVRAS-CHAVE:  Senhor Calvino, Fragmento, Literatura Filosófica, objectivização e análise do Mundo




[1]O Bairro de Gonçalo M. Tavares conta já com a publicação de algumas personagens: O Senhor Valéry (2002), O Senhor Henri (2003), O Senhor Brecht (2004), O Senhor Juarroz (2004), O Senhor Kraus (2005), O Senhor Walser (2006), O Senhor Breton (2008), O Senhor Swedenborg (2009), O Senhor Elliot (2010)

Fernando Pessoa, o desconhecido de si mesmo

Autor: Octavio Paz
Título: Fernando Pessoa, o desconhecido de si mesmo
Género: Ensaio Literário
Editora: Vega, 2ª edição
42 páginas, 1961, escrito em Paris



Resumo: O nobel mexicano (1990) é um escritor versátil nos vários géneros literários, seja poesia, ensaio ou romance, e laureado pela crítica pela forma lúcida e assertiva com que se dedica à escrita vanguardista, com preferência vincada para a função poética da Linguagem. Neste ensaio, o autor demonstra um interesse e conhecimento profundos por Fernando Pessoa, aproveitando a figura, a vida e obra do escritor português, nas suas complexidades e polimorfismos, para reflectir sobre a construção da identidade, nesta dialéctica entre realidade e ficção. Paz revisita criticamente as obras pessoanas, da poesia à prosa, dos heterónimos ao ortónimo, passando pelas tendências patrióticas, pagãs, estóicas, futuristas, simbólicas, e esotéricas. O tema da alienação e da busca de si mesmo, é mais do que um topos: é a substância de toda a obra de Fernando Pessoa. Assim, ao se procurar, inventou-se. Como ponto de partida, este ensaio começa por recordar que Pessoa (persona) quer dizer personagem, a máscara dos actores romanos, a capacidade de se ser ninguém de todas as formas.
            A biografia minuciosa de Pessoa depara o leitor com a viagem entre a irrealidade da sua vida quotidiana e a realidade das suas ficções – Álvaro de Campos, Alberto Caeiro, Bernardo Soares, Ricardo Reis, Mr Cross, Alexander Search, entre outros. No entanto, fracasso foi também uma palavra inscrita na vida do escritor português, até as suas paixões foram imaginárias, conhecendo-se apenas um breve enamoramento pela empregada de comércio de quem se despede em carta com as seguintes palavras: “o meu destino pertence a outra Lei de cuja existência a Ofelinha, nem sabe”. O nobel sugere, implicitamente, uma homossexualidade, que legitima de certa forma a contenção amorosa, sabendo-se que o seu grande vício era a imaginação, depois mesmo do álcool. “Anglómano, míope, cortês, fugidio, vestido de escuro, reticente e familiar, cosmopolita que predica o nacionalismo, investigador solene de coisas fúteis, humorista que nunca sorri e nos gela o sangue, inventor de outros poetas e destruidor de si mesmo, autor de paradoxos claros como a água, e como ela, vertiginosos: fingir é conhecer-se, misterioso que não cultiva o mistério, misterioso como a Lua do meio-dia, taciturno fantasma do meio-dia português, quem é Pessoa?” são as palavras iniciais de Octavio Paz neste seu ensaio.
            O seu interesse por Pessoa prende-se nas sombras e na obscuridade do quase anonimato e da quase celebridade, pois ninguém ignora o nome de Fernando Pessoa mas poucos sabem quem é ele verdadeiramente. As suas aparições são espasmódicas e o seu trabalho solitário é uma constante. Membro de um grupo de vanguarda, visionário e futurista – Orpheu -, Pessoa colabora em 1922 numa revista literária Contemporânea com o Banqueiro Anarquista, entregando-se a um jogo de veleidades políticas e mais tarde com a Mensagem faz uma interpretação ocultista e simbólica da História Portuguesa. Há algo terrivelmente soez, vil e torpe numa sociedade moderna na qual as pessoas toleram todo a espécie de mentiras da vida real, toda a espécie de realidades indignas e não suportam a existência da fábula, que é mera ficção. Escrevemos para ser o que somos ou para ser aquilo que não somos mas num e noutro caso buscamo-nos a nós mesmos não esquecendo que a ausência não é só privação de algo mas o pressentimento duma presença que nunca se mostra inteiramente. Ficam-nos as obras pessoanas como consciência dessa ausência aguda e da iminência do desconhecido e do desconhecimento de nós mesmos. 

PALAVRAS-CHAVE: Identidade, Análise crítica, Realidade vs Ficção, Fuga e Alienação.


O Fio do Horizonte

Autor: Antonio Tabucchi
Título: O fio do Horizonte
Editora: LeYa
Género: Romance policial
Edição: 1ª edição 2014 <1986
100 páginas






Resumo:

“O fio do horizonte é um lugar geométrico, porque se desloca à medida que nós nos deslocamos com ele. Gostaria muito que por um sortilégio o meu personagem o tivesse alcançado porque também ele o tinha no olhar”, confessa Tabucchi, no paratexto, em nota à margem do livro. E este seu personagem era Spino, um médico legista, uma espécie de companheiro derradeiro, um tutor a posteriori impassível e objectivo, procurando, incansavelmente, a resposta para a distância que separa os vivos dos mortos.
A acção passa-se numa cidade italiana, que nunca nos é revelada, mas sabemos que é costeira e que tem o mar como pano de fundo, cuja presença é assídua e permanente nas cogitações, incógnitas e investigações de Spino, não só enquanto símbolo de uma vastidão impossível de abarcar como metáfora de uma imensidão impossível de descodificar e compreender. Os 20 pequenos capítulos encerram descrições minuciosas, fechadas numa acção que teima em se tornar estática, num enredo que teima em andar em contratempo sem nunca encontrar as informações satisfatórias e esclarecedoras o bastante, tal como a exacta medida da morte, sem pressa mas inexorável.
Um misterioso assassinato, um corpo desconhecido e incógnito que chega à morgue de Spino e do seu ajudante Pasquale, uma morte noticiada anonimamente no jornal Gazzetta del Mare e tolhida de todas as demais informações, despertam a curiosidade do médico legista e do seu amigo jornalista Corrado. Spino sente uma vontade crescente e inexplicável de reconstituir o fio do crime de Kid, assim vulgarmente chamado mas conhecido também por Carlo Nobodi, um nome igualmente falso, tirado do inglês «nobody». Porquê esta ânsia existencial pela descoberta do mistério? «Porque ele está morto e eu estou vivo», responde-nos Spino, rapidamente. Mas quem é este morto? Um isco inconsciente? Um isco conivente e conveniente? Um pobre tonto? Um tipo que não tinha nada a ver? Uma testemunha incómoda? Ou qualquer outra coisa ainda? Podia tratar-se de terrorismo, vinganças, jogadas, histórias secretas, chantagens mas Spino e o leitor nunca chegam a saber.
Estranha e inusitadamente, o sentido desta morte aproxima várias personagens na trama, como era o caso de Antonio Arpetti, conhecido por Peppe Harpo, um médico erradicado da ordem por receitar facilmente estupefacientes e que tocava agora no clube nocturno, Tropical. No seguimento das tentativas de Spino em perceber as relações entre  Harpo e Kid, é-lhe devolvida a seguinte pergunta: «e quem és tu para ti? Sabes que se um dia quisesses sabê-lo tinhas de procurar à tua volta, reconstruir a tua identidade, rebuscar gavetas velhas, recuperar testemunhos de outras pessoas, sabe-se lá por onde, perdidas? Está tudo às escuras, tem de se ir às apalpadelas». A partir desse momento, Spino reforça a vontade de investir, obstinadamente, nessa demanda existencial de compreensão do sentido das (suas) coisas, que tendo uma ordem natural não acontecem ao acaso. O acaso é precisamente isso: apenas a nossa impossibilidade de perceber os verdadeiros nexos que unem as coisas, mesmo que com os olhos sempre postos no fio do horizonte.

PALAVRAS-CHAVE: Identidade, fio do horizonte, possibilidades e incertezas, Spino, existencialismo, acaso.



O filho de mil homens

Autor: Valter Hugo Mãe
Tìtulo: O filho de mil Homens
Editora: Alfaguara
Género: Romance
257 páginas
1ªedição 2011.




Resumo:
“Sei bem que sou filho de mil homens e mais mil mulheres  e queria muito ser pai de mil homens e mais mil mulheres”, afirma o autor na sua nota final do livro. Ao longo de vinte curtos capítulos, vai-se intensificando, complexificando e modalizando o desejo de paternidade, questionado muito além da necessidade ou hedonísmo de perpetuação do indivíduo, muito além da obsessão de prolongar uma memória “nossa”, muito além da naturalidade, da inevitabilidade ou impossibilidade do fenómeno.
Era uma vez um Homem que chegara aos quarenta anos e assumiu a tristeza de não ter um filho, via-se metade quando olhava ao espelho e acreditava que o afecto verdadeiro era o único desengano, a grande forma de encontro e de pertença, a grande forma de família. Crisóstemo pensava que quando se sonha tão grande a realidade aprende e talvez por isso tenha encontrado certo dia um menino na ponta do mundo, quase a perder-se, sem saber como se segurar e sem conhecer o caminho. A partir daquele momento, Camilo tornara-se seu filho, a quem dera como ponto de partida a certeza de que quem tem menos medo de sofrer, tem maiores possibilidades de ser feliz.  E a sua felicidade para sempre começara naquele dia.
Em analepse o leitor vai conhecendo individualmente todas as personagens nos seus contextos e nas suas circunstâncias, acima de tudo, nas suas limitações e impossibilidades: a anã era a mãe de Camilo, que morrera assim que ele nascera mas que lutara até ao fim pela viabilidade daquela gravidez; o Alfredo era o pescador que reclamara a criança como neto, viúvo de Carminda que, por sua vez, nunca superara o desgosto de ter perdido um filho; Isaura era filha de Maria, jovem que aos 16 anos se desencantara num primeiro relacionamento e que mais tarde viera arrebatar o coração de Crisóstemo. Porém, na história entra ainda o filho de Matilde, Antonino, que estava prometido a Isaura porque sendo homossexual queria esconder essa sua natureza dos olhares infâmes dos outros. Acima de tudo, Antonino encontrara um modo de regressar à mãe, voltar ao interior onde tudo se imagina e renasce perdoado já que os filhos perdoados voltam a ser perfeitos e Isaura conformara-se pensando que a felicidade é ser o que se pode. Não adianta sonhar com o que é feito apenas de fantasia e querer aspirar o impossível porque a verdade é esta: a felicidade é a aceitação do que se é e se pode ser. Se os felizes eram aqueles que aceitavam ser o que podiam, conseguiam aceder à estabilidade, saber com o que contar, ter as contas feitas acerca dos afectos e das expectativas.
Os afectos de Crisóstemo e Camilo outorgam coesão a todas as outras personagens, coerência aos capítulos, cerzindo a mensagem geral da obra: o amor é uma atitude, uma predisposição natural para se ser a favor de outrém, uma predisposição natural para se favorecer alguém. O Homem mesmo que não se torne no dobro dele próprio ao menos será um homem por inteiro e é por isso desistir de um filho seria como desistir do melhor de nós próprios. Cada filho somos nós no melhor que temos para dar. No melhor que temos para ser.

Aos quarenta anos, Crisóstemo com o seu inusitado entusiasmo mudou o mundo, porque quem tanto pede o que lhe pertence assim o mundo convence, afirma convictamente que “somos o resultado de tanta gente, de tanta história, tão grandes sonhos que vão passando de pessoa a pessoa, que nunca estaremos sós”. Camilo sorriu e retorquiu: não compreendo nada, só queria dizer que gosto da Teresa e gostava de arranjar uma namorada para sempre.” Pareciam-se e comunicavam entre si pela intensidade dos sentimentos e assim tinham inventado uma família.

O Conto da Ilha Desconhecida

Autor: José Saramago
Título: O Conto da Ilha Desconhecida
Editora: Caminho - LeYa
Género: Conto Literário
Edição: 12ª 2013
48páginas






            O único conto do nobel português reconhece que não é preciso ser uma obra de fôlego para  exibir profundidade, mostra que a consistência filosófica vem revestida de simplicidade literária, revela que a ironia é sempre o expediente mais mordaz e retórico da persuasão e confirma, ainda, que a natureza humana tem um espírito intemerado e ousado. Foi com essa ousadia que um Homem bateu à porta do rei, que passava a vida dividido entre a porta das petições e a porta dos obséquios – dividido sim, mas de forma assimétrica, claro, sempre muito mais enternecido com a dos obséquios do que a das petições.
            Depois de três dias deitado à porta do rei, o Homem foi finalmente atendido: queria um barco que o levasse à descoberta da Ilha Desconhecida. Mesmo reticente e bastante relutante ao facto de poderem ainda existir ilhas por descobrir - além das que já estavam contempladas nos mapas - o rei acedeu ao pedido deste Homem, por seu lado convicto de que se lhe chama desconhecida é precisamente por ainda não ser sido encontrada. Nesta diametralidade de perspectivas e expectativas, de bombordo a estibordo, se vai desenrolando o conto.
            Pela porta das certezas, saira a mesma funcionária da limpeza que tinha atendido o Homem, agora convencida de que se queria dedicar a encontrar a dita Ilha Desconhecida. Rapidamente, se empenhou nas arrumações do barco, colocou-o em ordem, um barco que também passara a ser dela, a partir do momento em que partilhava o mesmo sonho do Homem. Sem se apercebrem, começaram ali a viagem de ambos, ainda em terra, a viagem que viria a ser a verdadeira empresa das suas vidas já que «gostar é a melhor forma de ter e ter a pior forma de gostar».
            A indefinição dos nomes, do lugar e do tempo são coordenadas absolutamente irrelevantes no conto pois o que insufla verdadeiramente as vontades também é sempre indeterminado, desconhecido e intemporal: é essa sagacidade pelo que está por conhecer, é essa insatisfação pelo que falta cumprir, é essa a vontade pelo que está por fazer.
            O Homem que ainda nem tinha começado a recrutar tripulantes levava já atrás de si a mais fiel das companheiras - surpresas à parte - é assim que o destino se comporta connosco, já está mesmo atrás de nós a estender a mão para nos tocar no ombro e nós ainda vamos, distraidamente, a murmurar. A partilha deste sonho tornara-se agora na convicção profunda de que é necessário sair da ilha para ver a própria ilha, não nos vemos se não sairmos de nós mesmos. Esta alteridade no olhar, esse desafio aos limites e às limitações redimensionam-nos e reajustam-nos, num mar de incertezas e possibilidades que não cabem no expectável e que surpreendem sempre. Pela hora do meio-dia a Ilha Desconhecida fez-se então ao mar, à procura de si mesma.