sábado, 25 de fevereiro de 2017

A Ideia de Europa

Autor:George Steiner
Título: A Ideia de Europa
Género: Ensaio-Palestra
Editora: Relógio d’Água
Fevereiro de 2017
56 páginas


«A Europa é o lugar onde o jardim de Goethe quase faz fronteira com Buchenwald, onde a casa de Corneille confina com o mercado onde Joana d’Arc foi horrivelmente executada” (p.33)

Resumo: George Steiner desenvolve neste ‘opúsculo’ uma reflexão lúcida, erudita e, inevitavelmente, pessimista sobre a ideia de Europa, que se constrói nas muitas fracturas, traumas, conflitos, tensões e relações agónicas de diversas índoles – culturais, sociais, políticas, económicas, religiosas.  O preâmbulo “A Cultura enquanto Convite”, apresentado por Rob Riemen, então Director e fundador do Instituto Nexus, revela algumas notas pelas quais se vai afinar o discurso do Professor, focando, desde logo, duas tónicas dominantes: «A Europa suicidou-se ao matar os seus judeus» e ser “culto” é muito mais do que ter erudição e eloquência, exige sobretudo cortesia e respeito. A cultura tal como o amor não tem o poder de ser impor à força, não oferece garantias mas é a única possibilidade de alcançarmos e protegermos a dignidade humana.
             A palestra de George Steiner assenta em axiomas, que pretendem legitimar e comprovar as profundas e estruturais diferenças entre a Europa e os Estados Unidos. Desde logo, os cafés são referidos enquanto espaços muito além da sua geografia, representam lugares de (des)encontros amorosos, de conspirações, de debates intelectuais ou, simplesmente, de meras bisbilhotices rasteiras. Seja para um flâneur ou numa dinâmica de laissez faire, a verdade é que se pensarmos na Milão de Stendhal, na Veneza de Casanova, na Paris de Baudelaire, os cafés foram sempre laboratórios de ideias, esquinas de caminhos cruzados, lugares de passagens e itinerâncias, pontos de viragem. Steiner relembra, inclusivamente, que em Agosto de 1914, quando as luzes se apagaram na Europa, Jaurès foi assassinado num café. Em rigor, um café não é um pub irlandês nem um bar americano: os pubs não têm tabuleiros de xadrez, nem jornais de acesso gratuito para os clientes e um bar americano é um santuário de meia-luz, de obscuridade - «a sua sociologia e o seu tecido psicológico estão impregnados de sexualidade, da presença desejada, sonhada ou afectiva de mulheres» (p.27). Relaciona-se com isto, o facto da Europa ter sido erigida à dimensão humana do caminhante, convidando a que seja percorrida a pé, fosse pelo viajante, pelo peregrino, ou pelo promeneur solitaire: «na Europa não há um Vale da Morte, uma Amazónia, um sertão insuperável» (p 28), nem tão pouco um intransponível Alasca ou um magnificente Grand Canyon. Na Europa as ruas têm nomes de grandes escritores, filósofos, humanistas, cada esquina é um pretexto para reviver a história, para evocar a existência de um passado que confere densidade à memória e consistência a uma identidade cultural. 
                Um outro facto insofismável, talvez até o mais importante para a concepção e génese do ideal de Europa, é este peso ambíguo da dualidade primordial, a herança de Atenas e Jerusalém. Se por um lado este legado se mostra conflitual por outro é sincrético porque ser europeu implica equilibrar e harmonizar forças concorrentes, representadas tanto por Sócrates e Isaías, como pelo magnetismo da Atenas pagã e da Jerusalém hebraica, seja pelo mito de Adão e Eva, Prometeu e Pandora. A pergunta que impera é «como pode a verdade de Jesus incorporar a indispensável herança da Grécia clássica?». Estas polaridades agudizam-se se pensarmos no neo paganismo da filosofia e da estética do Renascimento florentino. O humanismo europeu de Erasmo firma compromisso com os ideais áticos e hebraicos, por isso, a génese e a consolidação de Europa encontram-se e fortificam-se na “história de duas cidades”. Intrinsecamente ligada a essa problemática temos a nossa autoconsciência escatológica e o “sentimento de fim”. Heidegger sublinhou que o nosso legado ontológico é o da interrogação e do espanto, do pensamento especulativo, que abre azo a uma infinidade de possibilidades. Com ele promovem-se as três superiores dignidades do intelecto humano e da sensibilidade formadora – música, matemática, metafísica. 
           Confrontamo-nos hoje, sem precisar de um olhar muito atento, com uma onda de agnosticismo e ateísmo, que poderá estar a colocar em curso uma profunda mudança na identidade e na evolução milenar da Europa. A dignidade do homo sapiens, que outrora se alicerçava na conquista da sabedoria e na procura do conhecimento, até na pura criação estética, artística, corrompeu-se pela "economia do conhecimento", nesta ânsia de fazer fortuna de bens materiais: um ter que relega o ser, um paradigma sumamente vulgar e vazio. Steiner aponta duas causas/consequência para este fenómeno: o consumismo ostensivo e a uniformização dos modelos e padrões norte-americanos. Estará então hipotecado e esgotado o futuro 'desta' Europa como hoje a assumimos? «É possível que o futuro da “ideia de Europa” se esse futuro existe, dependa menos de bancos centrais e de subsídios à agricultura, de investimentos em tecnologia ou de tarifas comuns do que fomos levados a crer. É possível que a OCDE e a NATO, a futura expansão do euro ou de burocracias parlamentares à imagem do Luxemburgo não constituam a dinâmica primordial da visão europeia, ou que se efectivamente a constituem essa visão dificilmente possa estimular a alma humana» (p.46). Esperar que se arrepie caminho em relação a todos estes fenómenos e epifenómenos que hoje se adensam talvez seja um desiderato demasiado utópico e falível mas tenhamos certeza de que é imprescindível para que a “ideia de Europa não se afunde nesse grande museu de sonhos passados a que chamamos História”. 

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