Autor: Sándor Márai
Título: As velas ardem até ao fim
Género: Romance
Editora: Dom Quixote
8ª edição 2005
153 páginas
«No fundo de cada relação humana existe uma matéria palpável e,
por muitos
que sejam os argumentos e habilidades, essa realidade não muda.»
«Uma pessoa prepara-se para alguma coisa durante a vida inteira.
Primeiro, sente-se ofendido. Depois quer vingança. A seguir, fica à espera»
Resumo: «Porque a amizade não é um estado de espírito ideal. A
amizade é uma lei humana rigorosa» e por isso mesmo espelha todas as fragilidades do que é mais falível no ser humano. A escrita indagadora e inquietante de Sándor
Márai vai revelar a ambiguidade e as sombras de um sentimento longe de ser apolíneo mas que se exige sempre magnânimo e superior às próprias
circunstâncias. Qual é o limite da traição? Quando a culpa se agiganta nos
momentos mais exasperantes, onde fica a sublimação dos erros e onde cabe o perdão? O que
significa fidelidade? O que é que podemos esperar da(s) pessoa(s) que amamos? Estas
são algumas das questões estruturantes do romance e às quais o leitor não vai ficar indiferente
a um exercício de auto-análise.
Henry era filho
de um oficial da guarda e Konrád de um funcionário público, conheceram-se num
colégio militar interno em Viena quando tinham ambos dez anos. Desde esse
momento, desenvolveram uma amizade profundamente fraterna, que se foi adensando
e aprimorando com a partilha de inúmeras experiências e intimidades, comungaram
modos de vida e respeitavam-se, aparentemente, nas suas diferenças, tanto de
origens como de carácter. Se Konrád era reservado e de origens humildes,
gostava de música, livros de história, nunca tendo revelado qualquer vocação
para a carreira militar, já Henry chegou a general, proveniente de famílias
abastadas, lia livros sobre cavalos e viagens. As suas diferenças pareciam esbater-se quando Konrád apresentara Krisztina, sua amiga de infância a Henry, e por
quem este se apaixonara e acabaria por casar. Neste triângulo, Amor e
Amizade não pareciam quebrar qualquer sintonia nem tão pouco ser inconciliáveis mas acabaria por representar a húbris do romance.
Repentinamente numa manhã, soube-se da fuga de Konrád para a Ásia, tendo ficado desaparecido durante quarenta e um anos. O motivo de tal desaparecimento fica na penumbra para o leitor mas a sua revelação anuncia-se com uma carta que este escreve ao general e amigo, volvidos tantos anos. O pedido era simples mas inusitado: sugeria que o recebesse para jantar, no seu castelo na Hungria, um espaço que encerra silêncios, símbolos, omissões e memórias, de tal forma densas que é chegada a hora de reconciliação com todas as dores e culpas insanáveis.
Repentinamente numa manhã, soube-se da fuga de Konrád para a Ásia, tendo ficado desaparecido durante quarenta e um anos. O motivo de tal desaparecimento fica na penumbra para o leitor mas a sua revelação anuncia-se com uma carta que este escreve ao general e amigo, volvidos tantos anos. O pedido era simples mas inusitado: sugeria que o recebesse para jantar, no seu castelo na Hungria, um espaço que encerra silêncios, símbolos, omissões e memórias, de tal forma densas que é chegada a hora de reconciliação com todas as dores e culpas insanáveis.
Henry pede a
Nini, a velha ama que o viu nascer e amamentou, que organize o jantar com todo
o esmero e brio de antigamente, sem esquecer as velas sobre a mesa.
«- Que é que queres deste homem? – pergunta a ama.
- A verdade – disse o general.
- Conheces bem a verdade.
- Não conheço… É mesmo a verdade que não conheço.
- Mas conheces a realidade – disse a ama numa voz
aguda, ofensiva.
- A realidade não é a verdade – retorquiu o general. –
A realidade é apenas um pormenor».
Mas que verdade
poderia ser esta, tão traumática que tenha legitimado uma fuga de
quarenta e um anos sem uma despedida nem uma única palavra? Que culpa pode ser maior do que o tempo? Que perdão pode
agora ser dado quando quem o motivou já morreu?
A anagnórise faz-se, paulatinamente, ao longo da conversa quando Henry faz a sua narração dos acontecimentos e
dos factos: «Quero a verdade e a verdade para mim já não são alguns factos
policiais poeirentos e decrépitos, os segredos de paixões e equívocos antigos
dum corpo de uma mulher, morto e reduzido a pó…que importância tem tudo isso
para nós, para marido e amante, agora que esse corpo já não existe e nós somos
velhos…Que importa no fim da vida a verdade e a mentira, o engano, a traição, a
tentativa de homicídio ou mesmo o homicídio, que importa, onde quando e quantas
vezes me enganou contigo, com o meu melhor amigo, a minha mulher, o único e
grande amor e esperança da minha vida, Krisztina?...tudo o que foi é o que
poderia ter sido».
Tendo a
Polonaise Fantasie de Chopin como música ambiente e algumas notas veladas de agonia e angústia, Henry procura neste jantar a
resposta lacónica para duas perguntas incomensuráveis: o terá ficado depois de toda a inteligência, orgulho
e superioridade que uniu estes dois homens a esta mulher? A segunda e mais substancial: «Pensas
também que o significado da vida não seja outro senão a paixão, que um dia
invade o nosso coração, a nossa alma e o nosso corpo e depois arde para sempre
até à morte? Aconteça o que acontecer? E que se nós vivemos essa paixão talvez
não tenhamos vivido em vão? É assim tão profunda tão maldosa tão grandiosa e
desumana a paixão?...E talvez se dirija a uma pessoa em concreto ou apenas ao
desejo mesmo?...Essa é a pergunta». Já ao final da madrugada, começando a clarear mas ainda no silêncio da sala, as velas ardem até ao fim enquanto tentamos
ouvir a resposta.
Palavras-chave: Amizade, Paixão, Triângulo amoroso, culpa
Palavras-chave: Amizade, Paixão, Triângulo amoroso, culpa
Excertos:
«Para a paixão
é completamente indiferente aquilo que recebe do outro, quer exprimir-se por
inteiro, quer transmitir a sua vontade, mesmo que se não receba em troca mais
do que sentimentos ternos, cortesia, amizade ou paciência. Todas as grandes
paixões são sem esperança, de outra forma não seriam paixões apenas acordos,
compromissos razoáveis, trocas de interesses banais.»
«Porque os
deuses são invejosos como se sabe, e quando oferecem um ano de felicidade a um
mortal comum, anotam logo essa dívida e no fim da vida reclamam-na como juros de
usura».
«Porque amamos
sempre a pessoa “diferente” procuramo-la em todas as situações e variantes da
vida…sabes? O maior segredo e a maior dádiva da vida, quando duas pessoas “semelhantes”
se encontram. Isso é tão raro, como se a natureza impedisse com força e astúcia
essa harmonia – talvez porque para a criação do mundo e para a renovação da
vida necessita da tensão que se gera entre as pessoas que se procuram
eternamente, mas que têm intenções e ritmos de vida opostos.
«Que significa
fidelidade, que é que podemos esperar da pessoa que amamos? Estou velho,
reflecti muito sobre isso. A fidelidade não será um egoísmo terrível, egoísmo e
vaidade, como a maior parte das coisas e pretensões humanas na vida? Quando
exigimos fidelidade queremos que a outra pessoa seja feliz? E se a outra pessoa
não é feliz na prisão subtil da fidelidade, amamos essa pessoa de quem exigimos
fidelidade? E se não amamos o outro de modo a fazê-lo feliz, temos o direito de
exigir algo, fidelidade ou sacrifício?
«Se me tivesse
pedido o divórcio eu tê-lo-ia concedido. Mas ela não queria nada. Porque ela
também era alguém à sua maneira, à sua maneira feminina, ela também tinha sido
ferida por aqueles que amava; um porque fugiu duma paixão, não quis queimar-se
numa ligação, que sabia que era fatal, o outro porque soube a verdade, esperou
e guardou silêncio.»
«Não sabemos
nada de nós próprios. Falamos sempre sobre os nosso desejos, e tentamos
esconder-nos desesperada e inconscientemente. A vida torna-se quase
interessante quando já aprendeste as mentiras das pessoas e começas a desfrutar
e a notar que dizem sempre uma coisa diferente daquilo que pensam e querem
realmente…»
«Sobreviver a
alguém a quem amámos tanto que teríamos sido capazes de matar por ela,
sobreviver a alguém, a quem estávamos ligados de tal maneira que quase morremos
por isso, é um dos crimes mais misteriosos e inqualificáveis da vida. Os
códigos penais não conhecem esse crime.»
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