sábado, 25 de fevereiro de 2017

A Ideia de Europa

Autor:George Steiner
Título: A Ideia de Europa
Género: Ensaio-Palestra
Editora: Relógio d’Água
Fevereiro de 2017
56 páginas


«A Europa é o lugar onde o jardim de Goethe quase faz fronteira com Buchenwald, onde a casa de Corneille confina com o mercado onde Joana d’Arc foi horrivelmente executada” (p.33)

Resumo: George Steiner desenvolve neste ‘opúsculo’ uma reflexão lúcida, erudita e, inevitavelmente, pessimista sobre a ideia de Europa, que se constrói nas muitas fracturas, traumas, conflitos, tensões e relações agónicas de diversas índoles – culturais, sociais, políticas, económicas, religiosas.  O preâmbulo “A Cultura enquanto Convite”, apresentado por Rob Riemen, então Director e fundador do Instituto Nexus, revela algumas notas pelas quais se vai afinar o discurso do Professor, focando, desde logo, duas tónicas dominantes: «A Europa suicidou-se ao matar os seus judeus» e ser “culto” é muito mais do que ter erudição e eloquência, exige sobretudo cortesia e respeito. A cultura tal como o amor não tem o poder de ser impor à força, não oferece garantias mas é a única possibilidade de alcançarmos e protegermos a dignidade humana.
             A palestra de George Steiner assenta em axiomas, que pretendem legitimar e comprovar as profundas e estruturais diferenças entre a Europa e os Estados Unidos. Desde logo, os cafés são referidos enquanto espaços muito além da sua geografia, representam lugares de (des)encontros amorosos, de conspirações, de debates intelectuais ou, simplesmente, de meras bisbilhotices rasteiras. Seja para um flâneur ou numa dinâmica de laissez faire, a verdade é que se pensarmos na Milão de Stendhal, na Veneza de Casanova, na Paris de Baudelaire, os cafés foram sempre laboratórios de ideias, esquinas de caminhos cruzados, lugares de passagens e itinerâncias, pontos de viragem. Steiner relembra, inclusivamente, que em Agosto de 1914, quando as luzes se apagaram na Europa, Jaurès foi assassinado num café. Em rigor, um café não é um pub irlandês nem um bar americano: os pubs não têm tabuleiros de xadrez, nem jornais de acesso gratuito para os clientes e um bar americano é um santuário de meia-luz, de obscuridade - «a sua sociologia e o seu tecido psicológico estão impregnados de sexualidade, da presença desejada, sonhada ou afectiva de mulheres» (p.27). Relaciona-se com isto, o facto da Europa ter sido erigida à dimensão humana do caminhante, convidando a que seja percorrida a pé, fosse pelo viajante, pelo peregrino, ou pelo promeneur solitaire: «na Europa não há um Vale da Morte, uma Amazónia, um sertão insuperável» (p 28), nem tão pouco um intransponível Alasca ou um magnificente Grand Canyon. Na Europa as ruas têm nomes de grandes escritores, filósofos, humanistas, cada esquina é um pretexto para reviver a história, para evocar a existência de um passado que confere densidade à memória e consistência a uma identidade cultural. 
                Um outro facto insofismável, talvez até o mais importante para a concepção e génese do ideal de Europa, é este peso ambíguo da dualidade primordial, a herança de Atenas e Jerusalém. Se por um lado este legado se mostra conflitual por outro é sincrético porque ser europeu implica equilibrar e harmonizar forças concorrentes, representadas tanto por Sócrates e Isaías, como pelo magnetismo da Atenas pagã e da Jerusalém hebraica, seja pelo mito de Adão e Eva, Prometeu e Pandora. A pergunta que impera é «como pode a verdade de Jesus incorporar a indispensável herança da Grécia clássica?». Estas polaridades agudizam-se se pensarmos no neo paganismo da filosofia e da estética do Renascimento florentino. O humanismo europeu de Erasmo firma compromisso com os ideais áticos e hebraicos, por isso, a génese e a consolidação de Europa encontram-se e fortificam-se na “história de duas cidades”. Intrinsecamente ligada a essa problemática temos a nossa autoconsciência escatológica e o “sentimento de fim”. Heidegger sublinhou que o nosso legado ontológico é o da interrogação e do espanto, do pensamento especulativo, que abre azo a uma infinidade de possibilidades. Com ele promovem-se as três superiores dignidades do intelecto humano e da sensibilidade formadora – música, matemática, metafísica. 
           Confrontamo-nos hoje, sem precisar de um olhar muito atento, com uma onda de agnosticismo e ateísmo, que poderá estar a colocar em curso uma profunda mudança na identidade e na evolução milenar da Europa. A dignidade do homo sapiens, que outrora se alicerçava na conquista da sabedoria e na procura do conhecimento, até na pura criação estética, artística, corrompeu-se pela "economia do conhecimento", nesta ânsia de fazer fortuna de bens materiais: um ter que relega o ser, um paradigma sumamente vulgar e vazio. Steiner aponta duas causas/consequência para este fenómeno: o consumismo ostensivo e a uniformização dos modelos e padrões norte-americanos. Estará então hipotecado e esgotado o futuro 'desta' Europa como hoje a assumimos? «É possível que o futuro da “ideia de Europa” se esse futuro existe, dependa menos de bancos centrais e de subsídios à agricultura, de investimentos em tecnologia ou de tarifas comuns do que fomos levados a crer. É possível que a OCDE e a NATO, a futura expansão do euro ou de burocracias parlamentares à imagem do Luxemburgo não constituam a dinâmica primordial da visão europeia, ou que se efectivamente a constituem essa visão dificilmente possa estimular a alma humana» (p.46). Esperar que se arrepie caminho em relação a todos estes fenómenos e epifenómenos que hoje se adensam talvez seja um desiderato demasiado utópico e falível mas tenhamos certeza de que é imprescindível para que a “ideia de Europa não se afunde nesse grande museu de sonhos passados a que chamamos História”. 

segunda-feira, 16 de janeiro de 2017

As velas ardem até ao fim

Autor: Sándor Márai
Título: As velas ardem até ao fim
Género: Romance
Editora: Dom Quixote
8ª edição 2005
153 páginas


«No fundo de cada relação humana existe uma matéria palpável e, 
por muitos que sejam os argumentos e habilidades, essa realidade não muda.»

«Uma pessoa prepara-se para alguma coisa durante a vida inteira.
Primeiro, sente-se ofendido. Depois quer vingança. A seguir, fica à espera»


Resumo: «Porque a amizade não é um estado de espírito ideal. A amizade é uma lei humana rigorosa» e por isso mesmo espelha todas as fragilidades do que é mais falível no ser humano. A escrita indagadora e inquietante de Sándor Márai vai revelar a ambiguidade e as sombras de um sentimento longe de ser apolíneo mas que se exige sempre magnânimo e superior às próprias circunstâncias. Qual é o limite da traição? Quando a culpa se agiganta nos momentos mais exasperantes, onde fica a sublimação dos erros e onde cabe o perdão? O que significa fidelidade? O que é que podemos esperar da(s) pessoa(s) que amamos? Estas são algumas das questões estruturantes do romance e às quais o leitor não vai ficar indiferente a um exercício de auto-análise.
Henry era filho de um oficial da guarda e Konrád de um funcionário público, conheceram-se num colégio militar interno em Viena quando tinham ambos dez anos. Desde esse momento, desenvolveram uma amizade profundamente fraterna, que se foi adensando e aprimorando com a partilha de inúmeras experiências e intimidades, comungaram modos de vida e respeitavam-se, aparentemente, nas suas diferenças, tanto de origens como de carácter. Se Konrád era reservado e de origens humildes, gostava de música, livros de história, nunca tendo revelado qualquer vocação para a carreira militar, já Henry chegou a general, proveniente de famílias abastadas, lia livros sobre cavalos e viagens. As suas diferenças pareciam esbater-se quando Konrád apresentara Krisztina, sua amiga de infância a Henry, e por quem este se apaixonara e acabaria por casar. Neste triângulo, Amor e Amizade não pareciam quebrar qualquer sintonia nem tão pouco ser inconciliáveis mas acabaria por representar a húbris do romance. 
Repentinamente numa manhã, soube-se da fuga de Konrád para a Ásia, tendo ficado desaparecido durante quarenta e um anos. O motivo de tal desaparecimento fica na penumbra para o leitor mas a sua revelação anuncia-se com uma carta que este escreve ao general e amigo, volvidos tantos anos. O pedido era simples mas inusitado: sugeria que o recebesse para jantar, no seu castelo na Hungria, um espaço que encerra silêncios, símbolos, omissões e memórias, de tal forma densas que é chegada a hora de reconciliação com todas as dores e culpas insanáveis.
Henry pede a Nini, a velha ama que o viu nascer e amamentou, que organize o jantar com todo o esmero e brio de antigamente, sem esquecer as velas sobre a mesa.
«- Que é que queres deste homem? – pergunta a ama.
- A verdade – disse o general.
- Conheces bem a verdade.
- Não conheço… É mesmo a verdade que não conheço.
- Mas conheces a realidade – disse a ama numa voz aguda, ofensiva.
- A realidade não é a verdade – retorquiu o general. – A realidade é apenas um pormenor».

Mas que verdade poderia ser esta, tão traumática que tenha legitimado uma fuga de quarenta e um anos sem uma despedida nem uma única palavra? Que culpa pode ser maior do que o tempo? Que perdão pode agora ser dado quando quem o motivou já morreu?
A anagnórise faz-se, paulatinamente, ao longo da conversa quando Henry faz a sua narração dos acontecimentos e dos factos: «Quero a verdade e a verdade para mim já não são alguns factos policiais poeirentos e decrépitos, os segredos de paixões e equívocos antigos dum corpo de uma mulher, morto e reduzido a pó…que importância tem tudo isso para nós, para marido e amante, agora que esse corpo já não existe e nós somos velhos…Que importa no fim da vida a verdade e a mentira, o engano, a traição, a tentativa de homicídio ou mesmo o homicídio, que importa, onde quando e quantas vezes me enganou contigo, com o meu melhor amigo, a minha mulher, o único e grande amor e esperança da minha vida, Krisztina?...tudo o que foi é o que poderia ter sido».
Tendo a Polonaise Fantasie de Chopin como música ambiente e algumas notas veladas de agonia e angústia, Henry procura neste jantar a resposta lacónica para duas perguntas incomensuráveis: o terá ficado depois de toda a inteligência, orgulho e superioridade que uniu estes dois homens a esta mulher? A segunda e mais substancial: «Pensas também que o significado da vida não seja outro senão a paixão, que um dia invade o nosso coração, a nossa alma e o nosso corpo e depois arde para sempre até à morte? Aconteça o que acontecer? E que se nós vivemos essa paixão talvez não tenhamos vivido em vão? É assim tão profunda tão maldosa tão grandiosa e desumana a paixão?...E talvez se dirija a uma pessoa em concreto ou apenas ao desejo mesmo?...Essa é a pergunta». Já ao final da madrugada, começando a clarear mas ainda no silêncio da sala, as velas ardem até ao fim enquanto tentamos ouvir a resposta.

Palavras-chave: Amizade, Paixão, Triângulo amoroso, culpa

Excertos:

«Para a paixão é completamente indiferente aquilo que recebe do outro, quer exprimir-se por inteiro, quer transmitir a sua vontade, mesmo que se não receba em troca mais do que sentimentos ternos, cortesia, amizade ou paciência. Todas as grandes paixões são sem esperança, de outra forma não seriam paixões apenas acordos, compromissos razoáveis, trocas de interesses banais.»

«Porque os deuses são invejosos como se sabe, e quando oferecem um ano de felicidade a um mortal comum, anotam logo essa dívida e no fim da vida reclamam-na como juros de usura».

«Porque amamos sempre a pessoa “diferente” procuramo-la em todas as situações e variantes da vida…sabes? O maior segredo e a maior dádiva da vida, quando duas pessoas “semelhantes” se encontram. Isso é tão raro, como se a natureza impedisse com força e astúcia essa harmonia – talvez porque para a criação do mundo e para a renovação da vida necessita da tensão que se gera entre as pessoas que se procuram eternamente, mas que têm intenções e ritmos de vida opostos.  

«Que significa fidelidade, que é que podemos esperar da pessoa que amamos? Estou velho, reflecti muito sobre isso. A fidelidade não será um egoísmo terrível, egoísmo e vaidade, como a maior parte das coisas e pretensões humanas na vida? Quando exigimos fidelidade queremos que a outra pessoa seja feliz? E se a outra pessoa não é feliz na prisão subtil da fidelidade, amamos essa pessoa de quem exigimos fidelidade? E se não amamos o outro de modo a fazê-lo feliz, temos o direito de exigir algo, fidelidade ou sacrifício?

«Se me tivesse pedido o divórcio eu tê-lo-ia concedido. Mas ela não queria nada. Porque ela também era alguém à sua maneira, à sua maneira feminina, ela também tinha sido ferida por aqueles que amava; um porque fugiu duma paixão, não quis queimar-se numa ligação, que sabia que era fatal, o outro porque soube a verdade, esperou e guardou silêncio.»

«Não sabemos nada de nós próprios. Falamos sempre sobre os nosso desejos, e tentamos esconder-nos desesperada e inconscientemente. A vida torna-se quase interessante quando já aprendeste as mentiras das pessoas e começas a desfrutar e a notar que dizem sempre uma coisa diferente daquilo que pensam e querem realmente…»


«Sobreviver a alguém a quem amámos tanto que teríamos sido capazes de matar por ela, sobreviver a alguém, a quem estávamos ligados de tal maneira que quase morremos por isso, é um dos crimes mais misteriosos e inqualificáveis da vida. Os códigos penais não conhecem esse crime.»

sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

Mel

Autor: Ian McEwan
Título: Mel
Género: Romance
Editora: Gradiva
1ª edição 2012
387 páginas


«Se ao menos eu tivesse encontrado, nesta
busca, uma pessoa declaradamente má»

Resumo:
O autor de Expiação revela neste romance a interferência da realidade na ficção, confundindo universos e diluindo fronteiras entre verdade e verosímil. Ian McEwan tece com grande fluidez de linguagem muitas considerações filosóficas, histórico-políticas, literárias que conferem não só densidade à escrita, nos vários níveis interpretativos, como dotam a obra de uma riqueza inegável de referências e intertextualidades. De forma paulatina, vamos sendo conduzidos, de artimanha em artimanha, de ilusão em ilusão, de engano em engano, por um edifício labiríntico e frágil cheio de expectativas, surpresas e desilusões. O jogo geo-político emoldura todo o enredo e mantém firme uma trama, equacionada nestes terrenos movediços de serviços secretos do MI5, na segunda metade do século XX. Este cenário explora as fraquezas humanas e amplifica as terríveis consequências das escolhas individuais - ora mais passionais, ora mais racionais - nas suas implicações colectivas. Concomitantemente, Mel consegue cumprir os requisitos de um thriller de espionagem e é uma verdadeira lição de História que materializa a crise social da década de 70, os radicalismos e extremismos políticos e religiosos, o terrorismo, evocando ainda a crise do petróleo e a instabilidade no Médio-Oriente. McEwan exibe especial mestria na hibridização da natureza do romance, que é fundamentalmente uma história de amor(es), e que como qualquer outro jogo de espionagem envolve variáveis chave como (des)confiança, (im)possibilidade, (des)respeito, ilusão, erotismo, (des)engano, traição, solidão e arrebatamento. Os papéis de cada interveniente vão-se invertendo, desfocando numa labilidade caleidoscópica que confunde e inebria até o leitor mais atento.  
Nas catacumbas do MI5, a protagonista Serena Frome é convidada a participar numa missão cujo nome de código é MEL e que visa atrair intelectuais de esquerda, não decididamente pró-soviéticos, aliciando-os no sentido de se tornarem mais alinhados com uma nova ordem. Serena, é obviamente bonita mas não necessariamente brilhante e o convite para integrar esta operação advém, desde logo, de um envolvimento privilegiado, intenso e fugaz, que manteve com um professor mais velho. Esta missão visa explorar “sweet tooth” de alguns agentes desafiando todos os limites até às últimas consequências. No entanto, Serena fica apenas incumbida de estudar a obra de Tom Haley e convencê-lo a ser um fiel depositário de uma Bolsa, instituída por uma Fundação, que garantirá o seu sustento e autonomia de escritor. A contrapartida da escrita revela-se, contudo, um presente envenenado, uma vez que Tom será vigiado e discretamente levado a redireccionar a sua ideologia política. Como seria facilmente expectável, a jovem agente apaixona-se pelo escritor e a história sofre constantes reviravoltas, subverte-se debaixo dos anseios inerentes e angústias éticas, nesta ambivalência de luz e sombra, mistério e revelação. 
A última voz no derradeiro capítulo é a de Tom, numa carta de despedida mordaz que deixa a Serena e em jeito de clímax, levanta múltiplas interrogações: será perdoável a sua traição? Sir Haley amá-la-á dessa forma tão incondicional atendendo a que relação foi desenvolvida em terrenos tão frágeis e escusos? O que era sincero e o que era fingimento? O romance distópico que Serena encontra sobre a mesa - depois de Tom ter sido aplaudido pela crítica: Telegraph, Times Literary Supplement, Listener, The Times - poderá agora ser um potencial vencedor do Prémio Austen? E quererá Serena que este seja publicado sob pena de exporem os mundos paralelos que construíram à sua volta? «Não há pressa em sermos publicados…Quando as coisas acalmarem, quando eu tiver desaparecido dos cabeçalhos, voltarei. Se a tua resposta for um não fatal, bem, não fiz nenhuma cópia disto, esta é a única e podes deitar-lhe fogo. Se ainda me amares e a tua resposta for sim, então será o início da nossa colaboração e esta carta, com a tua permissão, será o último capítulo de Mel. A decisão é tu, querida Serena.»

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«Os beijos dele começaram a tornar-se mais sérios e estávamos presentes a esquecer o sítio onde nos encontrávamos. Ele apertou-me o rosto entre as palmas das mãos e disse:
-Ouve, aconteça o que acontecer, tens de saber como gosto de estar contigo.
Fiquei preocupada. Aquele era o género de banalidade que um herói do cinema diz à namorada antes de ir morrer a qualquer sítio.
-Aconteça o que acontecer?-repeti.
Ele beijava-me, empurrando-me para trás contra as pedras desconfortáveis.
- O que quero dizer é que nunca hei-de mudar de opinião. Tu és muito, muito especial»

«Tive de experimentar o travo da tua solidão, de habitar a tua insegurança, a tua ânsia de louvor por parte dos teus superiores, a tua falta de sentimentos fraternais, os teus pequenos impulsos de snobismo, de ignorância e de vaidade, a tua consciência social diminuta, os teus momentos de pena de ti mesma, e a tua ortodoxia em relação à maioria dos assuntos. E fiz tudo isto sem ignorar a tua inteligência, beleza e ternura, o teu amor pelo sexo e por te divertires, o teu humor sarcástico e os teus doces instintos protectores. Vivendo dentro de ti, vi-me claramente: a minha cupidez material e a avidez de estatuto, a minha visão unilateral a raiar o autismo. E, depois, a minha vaidade ridícula – sexual, no vestuário, mas, acima de tudo, estética: porque outra razão te faria demorares-te interminavelmente nas minhas histórias, porque outra razão insistiria em pôr a itálico as minhas expressões predilectas? [...] Para te recriar na página tive de me transformar em ti e de te compreender (é isto que os romances exigem) e ao fazê-lo, o inevitável aconteceu. Quando me meti na tua pele, devia ter adivinhado todas as consequências. Ainda te amo. Não, não é isso. Amo-te mais ainda». 

quarta-feira, 30 de novembro de 2016

Golpe de Teatro

Autor: Helder Moura Pereira
Título: Golpe de Teatro
Género: Poesia
Editora: Asírio& Alvim
1ª edição 2016
67 páginas




To be loved
is half the way
I thought
Robert Creeley


Resumo: “Atenção à distância entre o cais e o comboio..”… é esta a imagem que se induz erronea e inadvertidamente no imaginário do leitor, como se de repente nos encontrássemos em trânsito numa qualquer estação ferroviária. No entanto, quando se afina a percepção, a poesia de Helder Moura Pereira inicia a viagem não a partir de um cais mas de um caos de 10 carruagens, na companhia de um narrador autodiegético e tendo como marca de água o minimalismo pós moderno. Se Em Cima do Acontecimento (1995), o autor abdicara de um ímpeto declarativo, nesta sua última obra vai reivindicar o direito à palavra e à sua consubstanciação nela. Este Golpe de Teatro, na ressonância do seu lugar epónimo francês ‘coup de théâtre’, adivinha peripécias e reflexões acerca de sinais do quotidiano, numa visão lúcida, ácida e sempre assertiva. Este Golpe, em compasso quaternário, apresenta a seguir aO INTERVALO ENTRE O CAOS E O COMBOIO duas outras partes até chegarmos à homónima da obra, qual efeito sinedoquiano.
               No primeiro poema [Vejo daqui a ponte que atravessa/o rio da expressão verdadeira/e comum do amor. No leito desse/rio amor e desejo coincidem] ecoam algumas notas Brechtianas - «do rio que tudo arrasta, diz-se que é violento mas ninguém chama violentas às margens que o comprimem» – nesse caudal da certeza que corre pressionado pelas margens da insinuação e da súplica. A ironia é explícita e por vezes até cínica, pejada de interrogações retóricas – "Querem ver que um belo dia eu morro e a estúpida da corda ainda vai continuar tesa?" -, de insinuações nesta luz indirecta que desfoca o ponto de partida e de chegada. 
                Já na segunda parte, com as sombras mais esbatidas, na lentidão dos gestos e no eco dos gritos inaudíveis, agudiza-se uma angústia e melancolia - "A vida parada, sem corda nenhuma, o longo caminho, a longa espera". Talvez por isso, os HOMENS OLHEM PARA O CÉU QUANDO PASSA UM AVIÃO, pois há sinais que precisam vir de cima para sermos surpreendidos cá em baixo tanto mais se assumirmos que qualquer vida daria um romance – “…Invadimos, sim,/ os ares, será culpa, será ainda/ espanto isto de olharmos/ para o céu quando passa um avião?”
As palavras ganham corpo e particular atenção, sejam elas gastas, desconhecidas, irritantes, antiquadas ou mortas num exercício de cisão entre o significante e o significado porque uma coisa é o som e outra o seu sentido: “Depois de tanta coisa a pessoa quase/ gagueja ao dizer a palavra ternura. É/ o que mais lhe falta. Quando diz sexo/sai-lhe uma palavra limpa e mesmo/ que em vez disso diga fazer amor,/fazer amor não tem aquele ar deslocado/e antiquado que tem noutras bocas./ Com a palavra ternura é que se embrulha um bocado, quando a diz parece/que a palavra não é uma palavra,/parece mesmo a ideia de ternura/a formar-se como matéria na sua boca”.  
E eis que na última página se “deu um golpe de teatro, a vida,/afinal, tinha outras coisas para mostrar/” e para serem compreendidas. O leitor sente-se assim desafiado a novas e reiteradas leituras para a decifração da ordem e para o deslindar de um caos que se converte (agora sim!) em cais de partida, num percurso de entendimento que fica sempre por cumprir: “Efusivo como num abraço/sincero, todo o corpo./Todo o corpo num abraço/sincero. Visto de fora é um abraço de dizer adeus?/Visto aqui de dentro/é mais do género olá/que bom estás de volta”.


O INTERVALO ENTRE O CAOS E O COMBOIO
[Vejo daqui a ponte que atravessa]
[Houve um milagre na terra desguarnecida]
[A perda do amor é sempre dano,]
[Esticámos e esticámos e esticámos]
[Torcido o nó da árvore, lâmina]
[De facto só faltava isto, atiras-me]
[Dias acinzentados, de cheiros e sabores]
[Deixaste de saber dançar, dançarino]
[Efusivo como num abraço]
[Não te dei ouvidos]

SOMBRAS ESBATIDAS NO CORAÇÃO DA CASA
[Ninguém se via –e a minha visão derrotada]
[O caminho era longo, como era]
[Abri mão de palavras desconhecidas]
[Ainda hoje não vi ninguém]
[Deixa-me da mão. Duro é o tempo]
[É preciso fixar a geometria da casa,]
[Faz uma grande diferença deixar]

OS HOMENS OLHAM PARA O CÉU QUANDO PASSA UM AVIÃO
[Eu era um homem sozinho, reuniam-se à volta]
[O objecto que estava a proteger a superfície]
[Escreveu, então, a olho nu. Uma folha]
[Levanto-me com força para o poema,]
[Quando converso com o meu dilecto amigo]
[Frente ao mar apetecia perguntar]
[Junto às águas do rio, quando eram]
[Acidentado, o caminho]
[A falta de jeito, pois era alguém pouco]
[Meu Deus, o que as pessoas guardam]
[Caem sobre a água todas as luzes,]
[Depois de tanta coisa a pessoa quase]
[Ou um grande silêncio ou]
[Acendia os cigarros uns nos outros]
[Abre a boca e fecha os olhos]

GOLPE DE TEATRO

[Já disseste de uma vez por todas]
[Foi excitante percebermos qual a cor]
[Sempre me irritou muito a palavra]
[Semente alada, borboleta de terra]
[Vou-me embora, disse eu no meio]
[Lembro-me bem desse dia, porque foi]
[Ferrugem no leme orientador]
[O marinheiro, após muito tempo]
[A meio da tarde e à noite, é mais]
[Os pés pesados arrastam-se, os pés]
[Chegamos ao fim do dia e cada um]
[Deu-se um golpe de teatro, a vida]


Vide Recensão feita por Ricardo MARQUES" [Recensão crítica a 'Golpe de Teatro', de Helder Moura Pereira]" / Ricardo Marques. In: Revista Colóquio/Letras. Recensões Críticas, n.º 193, Set. 2016, p. 211-213


terça-feira, 18 de outubro de 2016

A Beleza e a Tristeza

Autor: Yasunary Kawabata
Título: A Beleza e a Tristeza
Género: Romance
Editora: D. Quixote
1ª edição 2010
186 páginas




-Muitas mulheres são infelizes por isso consolam-se com ilusões.
-Não há nada de errado com elas?
-É fácil para uma mulher enganar-se. Consegue fazer uma mulher enganar-se, não consegue? (p.74)


Resumo: Oki Toshio é um escritor de meia-idade que fez uma viagem a Kyoto para ouvir os sinos dos templos na noite de Ano-Novo mas é motivado, sobretudo, pela nostalgia do passado e pelo desejo de reencontrar Otoko, que fora sua amante vinte e quatro anos antes e agora com quarenta é uma pintora de renome. Uma garota de dezesseis anos é a obra que imortaliza este amor, um sucesso de vendas, na qual Oki narra com requinte e preciosismo esta paixão com a então adolescente mesmo já estando casado com Fumiko, uma mulher que por sua vez nos inquieta pela tristeza, pela sujeição e consentimento de tudo. “Ao aproximar-se dos quarenta Otoko questionava-se se o facto de Oki permanecer dentro dela significava que aquele riacho de tempo estava estagnado e não fluía. Ou a imagem que tinha dele fluíra com ela ao longo do tempo, como uma flor à revia num rio? Como ela fluía ao longo do riacho de tempo dele, era algo que não sabia. Embora não a pudesse ter esquecido o tempo teria pelo menos fluído de maneira diferente para ele. Mesmo se duas pessoas eram amantes, os seus riachos de tempo nunca seriam iguais” (p. 14). Otoko nunca mais se envolvera com nenhum homem depois de Oki e vive agora com a sua aprendiz Keiko Sakami com quem mantém uma relação amorosa. Esta mulher é impetuosa e impiedosa, obstinada, dissimulada, amoral, perversa e em nome do amor que dedica a Otoko decide vingá-la seduzindo o filho de Oki, Taichiro, que se envolve nesta teia inesperadamente e que se torna talvez a maior vítima deste jogo. “Otoko perguntou-se se as mulheres seriam mais teimosas umas para as outras do que em relação aos homens e sentiu-se de novo atingida pela sua antiga sensação de culpa. Teria sido ela a ensinar a Keiko como infligir dor?” (p.106). Keiko é o móbil de toda a acção desviando o olhar de qualquer leitor que se queira focar no romance interrompido entre Otoko e Oki.
Y. Kawabata (1899-1972) constrói um universo enredado por esta personagem profundamente erótica, maliciosa, obsessiva, ciumenta e descreve este perfil perturbado e perturbador com uma serenidade desconcertante e limpidez de linguagem. A transparência com que se desvelam todos estes afectos distorcidos e pecaminosos, a manipulação entre as personagens e a crueldade que as envolve representam o mérito deste romance, que termina sob o olhar incrédulo de qualquer leitor. 
“A beleza e a tristeza” é por isso um título demasiado vago para abarcar a profundidade do erotismo, da maldade, da vingança, do ciúme, da perversão, da culpa, de tantos pensamentos e impulsos de suicídio e homicídio mas acima de tudo, é um título inexpressivo para denominar a insuperabilidade das perdas ao longo do romance.Talvez a beleza não seja assim tão etérea e talvez a tristeza usurpe um outro lugar, o da desistência e o da rendição: “Uma vez quando estavam a fazer amor, Otoko gemeu delirante e suplicou-lhe que parasse. Oki soltou-a e ela abriu os olhos. Tinha as pupilas dilatadas e a brilhar.-Mal te consigo ver Sonny-boy. O teu rosto parece desfocado, como se estivesse debaixo de um riacho. –Mesmo num momento daqueles, ela chamava-lhe «Sonny-boy» - Sabes se morresses eu não conseguia continuar viva. Não conseguiria! –Lágrimas brilharam nos cantos dos olhos de Otoko. Não eram lágrimas de tristeza mas de rendição» (p. 146)


Palavras-chave: vingança, traição, erotismo, obsessão, rendição

segunda-feira, 5 de setembro de 2016

Leão Velho

Autor: Lídia Jorge
Título: Leão Velho
Género: Conto
Editora: Dom Quixote
2004
47 páginas





«O problema da vida de um homem é que acima do instinto tem a honra. O dever de um bicho é seguir o seu instinto. O dever de um homem é contrariá-lo»
p. 25

Resumo: É sob a epígrafe de Carlos Fuentes - “são necessárias várias vidas para fazer uma só pessoa” - que Lídia Jorge nos oferece este conto, em jeito de fábula, numa mise en scène do imaginário colonial, com todas as ressonâncias imperialistas que daí decorrem. Em palco está o desejo de três homens de reviverem experiências outrora partilhadas em tempos idos: o director Santos Manuel, o colaborador Orlando Petit e o empregado do guichet, João Fortaleza. O mote é simples e o enredo linear: o abate de um animal velho em modo de safari africano. No entanto, o que se adivinhava ser um fim-de-semana calmo na propriedade do Alentejo de Santos Manuel, converte-se num déjà vu dos tempos em Moçambique ou não fosse o próprio leão proveniente da província de Sofala. Tudo foi então concebido, pormenorizadamente, discutido e ajuizado, desde as técnicas, aos meios, à estratégia, passando pelo lugar, tempo e espaço, em prol de um desejo sem preço, pois é sempre esse o valor de uma vontade.
Este desafio desejava-se, falaciosamente, simétrico e justo e por isso foram até valorizadas questões éticas, vejamos: «se ao contrário do que estava previsto, o bicho não oferecesse luta? Se o bicho não se levantasse do amalho, não se movesse ou caminhasse tão manco que nem desse para uma pessoa levantar a arma e atirar? Nesse caso o que faria? – perguntou o anfitrião. Por certo que não iria abater um animal à falsa fé, não iria alvejar um bicho moribundo, fingindo que estabelecia um combate. Não, não iria, nesse caso passaria a arma a um dos seus companheiros e um deles que o abatesse, se quisesse. (p.28). Neste vis-à-vis entre o instinto e a honra era necessária uma certa dose de lealdade, alinhada a um pseudo comportamento correctivo. Contudo, o que seria o expectável ser o lado (pre)dominante deu lugar a uma lógica invertida. 
                Lídia Jorge convoca neste conto uma herança histórico-social familiar e comum a todos nós e com uma ironia fina, divertida e subliminar caracteriza as “nossas” identidades, que mais não são do que a sobreposição de camadas na memória. Pergunte-se, então, o leitor pelo desfecho pedagógico deste conto enfabulado e aqui se deixa a resposta: «Uma vergonha. Éramos quatro, da mesma idade. Mas só um de nós se portou bem. E foi ele…ele, o bicho».

Palavras-chave: honra, instinto, memória, imaginário colonial.  


quarta-feira, 10 de agosto de 2016

O remorso de Baltazar Serapião

Autor: Valter Hugo Mãe
Título: O remorso de Baltazar Serapião
Género: Romance
Editora: Porto Editora
1ª edição 2015
278 páginas





«dizia o meu pai, a voz das mulheres só sabe ignorâncias e erros, cada coisa de que se lembrem nem vale a pena que a digam. mais completas estariam, de verdade, se deus as trouxesse ao mundo mudas. só para entenderem o que fazer na preparação da comida e debaixo de um homem e nada mais.»
(p.271)


Resumo: Mesmo com o alerta de tsunami de José Saramago no prefácio da obra, o leitor nunca terá o espírito preparado para conhecer esta realidade que Baltazar Serapião lhe apresenta nem estará de sobreaviso para o incómodo que irá sentir da primeira à última página. Encontramo-nos em tempo de El-rei D. Dinis, em plena Idade Média, um cenário que assombra e se projecta em pleno século XXI. A marca de água deste romance é uma memória colectiva portuguesa, uma herança de estereótipos e preconceitos, descrita de forma bruta, desarmante e boçal tanto mais se lhe reconhecermos mais do que verosimilhança, verdade. A citação em epígrafe de Jorge Melícias - “há a boca pisada de pedras e o remorso e uma parede mordida pelo eco” - fortemente sinestésica, adivinha, desde logo, este lado mais violento, impulsivo e irracional do Homem. 
O protagonista é proveniente da família Sarga, alcunha que advém da vaca, figura igualmente central e omnipresente em toda a estória e que carrega um simbolismo disfórico e pejorativo. Serapião é filho da sociedade senhorial da época, como todos os outros, e faz por isso juz aos arquétipos ancestrais enraizados na história social de qualquer povo. Brunilde é sua irmã, serve em casa de senhores que abusam dela sexualmente e uma vez grávida de Dom Afonso (marido de D. catarina) acaba por morrer maldita e amaldiçoada por todos, para grande vergonha da família. O problema nunca está na causa tacitamente consentida e legitimada pela força do (mau) hábito masculino mas na consequência da fraqueza feminina, na culpa imputada a quem nunca teve voz activa. O léxico arcaico e folclórico constrói imagens brutalmente cruas, retratos em carne viva de vícios grotescos e de pulsões animalescas. É sabido que sejam elas esposas, filhas, irmãs ou mães, a procriação converte-se no fim último de qualquer mulher, que se resume a um estatuto de fêmea, desejando-se silenciosa e submissa, anuindo incondicionalmente às violências que sobre elas são exercidas, «e se lhe dei o primeiro correctivo de mão na cara não foi porque não a amasse, e disse-lho, existe amor entre nós, assim te aceitei por decisão de meu pai que quer o melhor para mim, mas deus quis que eu fosse este homem e tu a minha mulher, como tal está nas minhas mãos completar tudo o que no teu feitio está incompleto, e deverás respeitar-me para que sejas respeitada. Nada do que te disser deve ser posto em causa, a menos que enlouqueças e me autorizes a pôr-te fim. (.p.69).
Mesmo ciente de que «o amor é uma maldade dos homens porque junta as mulheres aos homens numa direcção que só a eles compete» (p. 223) Serapião apaixonou-se por ermesinda, a mais bela das mulheres da aldeia: «senti uma felicidade absoluta, uma felicidade infinita como se possível fosse que, ali no meio de nada e deitados para a solidão estivéssemos no paraíso. Senti uma felicidade assim, como se, mais ainda, fosse possível não querer ver os defeitos de uma mulher e amá-la e conservá-la para além do que deus queria.»p.269. No entanto, também este amor foi subjugado, violentado, pervertido, devassado e difamado…um espaço incomensurável que deu lugar a um remorso inominável…«ajoeilhei-me a seus pés e confessei que a amaria até ao fim da vida. Sim, poderia sentir remorso pela competência tão apurada usada na educação da minha mulher. Por essa sensatez de não deixar que se perdesse sem retorno. Poderia sentir remorso por essa bondade de, a cada momento, a ir buscar à razão, a fazer ver as coisas mais correctas da criação, para ajudar a encontrar o seu lugar mais humano. Poderia sentir remorso naquele instante, perante a minha ermesinda tão diferente, que muito mais descansada estaria do corpo se eu me houvesse desleixado nos bons trabalhos de ser seu marido. (p.271). O maior de todos os remorsos de Baltazar Serapião acabaria, inevitavelmente, por vir nas últimas páginas do romance quando todos se «afastaram da minha ermesinda que, imóvel, respirou menos, respirou menos, respirou menos, não respirou. A sarga mugiu de modo lancinante» (p.278)


Palavras-chave: machismo, violência, submissão, jugo, silêncio