Autor: Ian
McEwan
Título: Mel
Género: Romance
Editora:
Gradiva
1ª
edição 2012
387
páginas
«Se ao menos eu tivesse encontrado, nesta
busca, uma pessoa declaradamente má»
Resumo:
O autor de Expiação revela neste romance a interferência da realidade na
ficção, confundindo universos e diluindo fronteiras entre verdade e verosímil. Ian
McEwan tece com grande fluidez de linguagem muitas considerações filosóficas,
histórico-políticas, literárias que conferem não só densidade à escrita, nos vários
níveis interpretativos, como dotam a obra de uma riqueza inegável de referências e
intertextualidades. De forma paulatina, vamos sendo conduzidos, de artimanha em
artimanha, de ilusão em ilusão, de engano em engano, por um edifício labiríntico
e frágil cheio de expectativas, surpresas e desilusões. O jogo geo-político emoldura
todo o enredo e mantém firme uma trama, equacionada nestes terrenos movediços
de serviços secretos do MI5, na segunda metade do século XX. Este cenário explora as fraquezas humanas e amplifica as terríveis consequências das escolhas individuais - ora mais passionais, ora mais racionais - nas suas implicações colectivas. Concomitantemente, Mel consegue cumprir os
requisitos de um thriller de espionagem e é uma verdadeira lição de História que
materializa a crise social da década de 70, os radicalismos e extremismos
políticos e religiosos, o terrorismo, evocando ainda a crise do petróleo e a instabilidade no Médio-Oriente.
McEwan exibe especial mestria na hibridização da natureza do romance, que é fundamentalmente uma história de amor(es), e que como
qualquer outro jogo de espionagem envolve variáveis chave como (des)confiança, (im)possibilidade, (des)respeito, ilusão,
erotismo, (des)engano, traição, solidão e arrebatamento. Os papéis de cada interveniente vão-se
invertendo, desfocando numa labilidade caleidoscópica que confunde e inebria até o
leitor mais atento.
Nas catacumbas do MI5, a protagonista Serena Frome é convidada a participar numa missão cujo nome de código é MEL e que visa
atrair intelectuais de esquerda, não decididamente pró-soviéticos, aliciando-os
no sentido de se tornarem mais alinhados com uma nova ordem. Serena, é
obviamente bonita mas não necessariamente brilhante e o convite para integrar
esta operação advém, desde logo, de um envolvimento privilegiado, intenso e fugaz, que manteve com um professor mais velho. Esta missão visa explorar “sweet tooth” de alguns agentes
desafiando todos os limites até às últimas consequências. No entanto, Serena fica apenas incumbida de estudar a obra de Tom Haley e convencê-lo a ser um fiel depositário
de uma Bolsa, instituída por uma Fundação, que garantirá o seu
sustento e autonomia de escritor. A contrapartida da escrita revela-se, contudo, um presente envenenado, uma vez
que Tom será vigiado e discretamente levado a redireccionar a sua ideologia política.
Como seria facilmente expectável, a jovem agente apaixona-se pelo escritor e a história
sofre constantes reviravoltas, subverte-se debaixo dos anseios inerentes e angústias éticas, nesta
ambivalência de luz e sombra, mistério e revelação.
A última voz no derradeiro capítulo é a de Tom, numa carta de despedida mordaz que
deixa a Serena e em jeito de clímax, levanta múltiplas interrogações: será
perdoável a sua traição? Sir Haley amá-la-á dessa forma tão incondicional atendendo a
que relação foi desenvolvida em terrenos tão frágeis e escusos? O que era sincero e o que
era fingimento? O romance distópico que Serena encontra sobre a mesa - depois de Tom ter sido aplaudido pela crítica: Telegraph, Times Literary
Supplement, Listener, The Times - poderá agora ser um potencial vencedor do Prémio Austen? E quererá
Serena que este seja publicado sob pena de exporem os mundos paralelos que construíram à sua volta? «Não há pressa em sermos
publicados…Quando as coisas acalmarem, quando eu tiver desaparecido dos cabeçalhos,
voltarei. Se a tua resposta for um não fatal, bem, não fiz nenhuma cópia disto,
esta é a única e podes deitar-lhe fogo. Se ainda me amares e a tua resposta for
sim, então será o início da nossa colaboração e esta carta, com a tua
permissão, será o último capítulo de Mel. A decisão é tu, querida Serena.»
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«Os beijos dele começaram a tornar-se mais sérios e estávamos
presentes a esquecer o sítio onde nos encontrávamos. Ele apertou-me o rosto
entre as palmas das mãos e disse:
-Ouve, aconteça o que acontecer, tens de saber como gosto de
estar contigo.
Fiquei preocupada. Aquele era o género de banalidade que um
herói do cinema diz à namorada antes de ir morrer a qualquer sítio.
-Aconteça o que acontecer?-repeti.
Ele beijava-me, empurrando-me para trás contra as pedras
desconfortáveis.
- O que quero dizer é que nunca hei-de mudar de opinião. Tu és
muito, muito especial»
«Tive de experimentar o travo da tua solidão, de habitar a tua
insegurança, a tua ânsia de louvor por parte dos teus superiores, a tua falta
de sentimentos fraternais, os teus pequenos impulsos de snobismo, de ignorância
e de vaidade, a tua consciência social diminuta, os teus momentos de pena de ti
mesma, e a tua ortodoxia em relação à maioria dos assuntos. E fiz tudo isto sem
ignorar a tua inteligência, beleza e ternura, o teu amor pelo sexo e por te
divertires, o teu humor sarcástico e os teus doces instintos protectores.
Vivendo dentro de ti, vi-me claramente: a minha cupidez material e a avidez de
estatuto, a minha visão unilateral a raiar o autismo. E, depois, a minha vaidade
ridícula – sexual, no vestuário, mas, acima de tudo, estética: porque outra
razão te faria demorares-te interminavelmente nas minhas histórias, porque
outra razão insistiria em pôr a itálico as minhas expressões predilectas? [...] Para te recriar na página tive de me transformar em ti e de te
compreender (é isto que os romances exigem) e ao fazê-lo, o inevitável
aconteceu. Quando me meti na tua pele, devia ter adivinhado todas as
consequências. Ainda te amo. Não, não é isso. Amo-te mais ainda».