Autor: Helder
Moura Pereira
Título: Golpe de
Teatro
Género: Poesia
Editora:
Asírio& Alvim
1ª edição 2016
67 páginas
To be loved
is half the way
I thought
Robert Creeley
Resumo: “Atenção à distância entre o cais e o comboio..”… é esta a imagem que se induz erronea e inadvertidamente no imaginário do leitor, como se de repente nos encontrássemos em trânsito numa qualquer estação ferroviária. No
entanto, quando se afina a percepção, a poesia de Helder Moura Pereira inicia a
viagem não a partir de um cais mas de um caos de 10 carruagens, na companhia de um narrador autodiegético e tendo como marca de água o minimalismo pós moderno. Se Em Cima do Acontecimento (1995), o autor
abdicara de um ímpeto declarativo, nesta sua última obra vai
reivindicar o direito à palavra e à sua consubstanciação nela. Este Golpe
de Teatro, na ressonância do seu lugar epónimo francês ‘coup de théâtre’, adivinha
peripécias e reflexões acerca de sinais do quotidiano, numa visão lúcida, ácida e sempre assertiva.
Este Golpe, em compasso quaternário, apresenta a seguir aO
INTERVALO ENTRE O CAOS E O COMBOIO duas outras partes até chegarmos à homónima
da obra, qual efeito sinedoquiano.
No primeiro poema [Vejo daqui a ponte que atravessa/o
rio da expressão verdadeira/e comum do amor. No leito desse/rio amor e desejo
coincidem] ecoam algumas notas Brechtianas - «do rio que tudo arrasta,
diz-se que é violento mas ninguém chama violentas às margens que o comprimem» – nesse caudal da certeza que corre pressionado pelas margens da insinuação e da súplica. A ironia é explícita e por vezes até cínica, pejada de interrogações retóricas – "Querem ver que um belo dia eu
morro e a estúpida da corda ainda vai continuar tesa?" -, de insinuações nesta luz indirecta que desfoca o ponto de partida e de chegada.
Já na segunda parte, com as sombras mais esbatidas, na
lentidão dos gestos e no eco dos gritos inaudíveis, agudiza-se uma angústia e melancolia - "A vida parada, sem corda nenhuma, o longo caminho, a longa
espera". Talvez por isso, os HOMENS OLHEM PARA O CÉU QUANDO PASSA UM AVIÃO, pois
há sinais que precisam vir de cima para sermos surpreendidos cá em baixo tanto mais se assumirmos que qualquer
vida daria um romance – “…Invadimos, sim,/ os ares, será culpa, será ainda/
espanto isto de olharmos/ para o céu quando passa um avião?”
As
palavras ganham corpo e particular atenção, sejam elas gastas,
desconhecidas, irritantes, antiquadas ou mortas num exercício de cisão entre o
significante e o significado porque uma coisa é o som e outra o seu sentido: “Depois
de tanta coisa a pessoa quase/ gagueja ao dizer a palavra ternura. É/ o que
mais lhe falta. Quando diz sexo/sai-lhe uma palavra limpa e mesmo/ que em vez
disso diga fazer amor,/fazer amor não tem aquele ar deslocado/e antiquado que
tem noutras bocas./ Com a palavra ternura é que se embrulha um bocado, quando a
diz parece/que a palavra não é uma palavra,/parece mesmo a ideia de ternura/a
formar-se como matéria na sua boca”.
E
eis que na última página se “deu um golpe de teatro, a vida,/afinal, tinha
outras coisas para mostrar/” e para serem compreendidas. O leitor sente-se assim desafiado a novas e reiteradas leituras para a decifração da ordem e para o deslindar de um caos que se converte (agora sim!) em cais de partida, num percurso de entendimento que fica sempre por cumprir:
“Efusivo como num abraço/sincero, todo o corpo./Todo o corpo num
abraço/sincero. Visto de fora é um abraço de dizer adeus?/Visto aqui de
dentro/é mais do género olá/que bom estás de volta”.
O INTERVALO ENTRE O
CAOS E O COMBOIO
[Vejo daqui a ponte que atravessa]
[Houve um milagre na terra desguarnecida]
[A perda do amor é sempre dano,]
[Esticámos e esticámos e esticámos]
[Torcido o nó da árvore, lâmina]
[De facto só faltava isto, atiras-me]
[Dias acinzentados, de cheiros e sabores]
[Deixaste de saber dançar, dançarino]
[Efusivo como num abraço]
[Não te dei ouvidos]
SOMBRAS ESBATIDAS NO
CORAÇÃO DA CASA
[Ninguém se via –e a minha visão derrotada]
[O caminho era longo, como era]
[Abri mão de palavras desconhecidas]
[Ainda hoje não vi ninguém]
[Deixa-me da mão. Duro é o tempo]
[É preciso fixar a geometria da casa,]
[Faz uma grande diferença deixar]
OS HOMENS OLHAM PARA
O CÉU QUANDO PASSA UM AVIÃO
[Eu era um homem sozinho, reuniam-se à volta]
[O objecto que estava a proteger a superfície]
[Escreveu, então, a olho nu. Uma folha]
[Levanto-me com força para o poema,]
[Quando converso com o meu dilecto amigo]
[Frente ao mar apetecia perguntar]
[Junto às águas do rio, quando eram]
[Acidentado, o caminho]
[A falta de jeito, pois era alguém pouco]
[Meu Deus, o que as pessoas guardam]
[Caem sobre a água todas as luzes,]
[Depois de tanta coisa a pessoa quase]
[Ou um grande silêncio ou]
[Acendia os cigarros uns nos outros]
[Abre a boca e fecha os olhos]
GOLPE DE TEATRO
[Já disseste de uma vez por todas]
[Foi excitante percebermos qual a cor]
[Sempre me irritou muito a palavra]
[Semente alada, borboleta de terra]
[Vou-me embora, disse eu no meio]
[Lembro-me bem desse dia, porque foi]
[Ferrugem no leme orientador]
[O marinheiro, após muito tempo]
[A meio da tarde e à noite, é mais]
[Os pés pesados arrastam-se, os pés]
[Chegamos ao fim do dia e cada um]
[Deu-se um golpe de teatro, a vida]
Vide Recensão feita por Ricardo MARQUES" [Recensão
crítica a 'Golpe de Teatro', de Helder Moura Pereira]" / Ricardo Marques.
In: Revista Colóquio/Letras. Recensões Críticas, n.º 193, Set. 2016,
p. 211-213