quarta-feira, 10 de agosto de 2016

O remorso de Baltazar Serapião

Autor: Valter Hugo Mãe
Título: O remorso de Baltazar Serapião
Género: Romance
Editora: Porto Editora
1ª edição 2015
278 páginas





«dizia o meu pai, a voz das mulheres só sabe ignorâncias e erros, cada coisa de que se lembrem nem vale a pena que a digam. mais completas estariam, de verdade, se deus as trouxesse ao mundo mudas. só para entenderem o que fazer na preparação da comida e debaixo de um homem e nada mais.»
(p.271)


Resumo: Mesmo com o alerta de tsunami de José Saramago no prefácio da obra, o leitor nunca terá o espírito preparado para conhecer esta realidade que Baltazar Serapião lhe apresenta nem estará de sobreaviso para o incómodo que irá sentir da primeira à última página. Encontramo-nos em tempo de El-rei D. Dinis, em plena Idade Média, um cenário que assombra e se projecta em pleno século XXI. A marca de água deste romance é uma memória colectiva portuguesa, uma herança de estereótipos e preconceitos, descrita de forma bruta, desarmante e boçal tanto mais se lhe reconhecermos mais do que verosimilhança, verdade. A citação em epígrafe de Jorge Melícias - “há a boca pisada de pedras e o remorso e uma parede mordida pelo eco” - fortemente sinestésica, adivinha, desde logo, este lado mais violento, impulsivo e irracional do Homem. 
O protagonista é proveniente da família Sarga, alcunha que advém da vaca, figura igualmente central e omnipresente em toda a estória e que carrega um simbolismo disfórico e pejorativo. Serapião é filho da sociedade senhorial da época, como todos os outros, e faz por isso juz aos arquétipos ancestrais enraizados na história social de qualquer povo. Brunilde é sua irmã, serve em casa de senhores que abusam dela sexualmente e uma vez grávida de Dom Afonso (marido de D. catarina) acaba por morrer maldita e amaldiçoada por todos, para grande vergonha da família. O problema nunca está na causa tacitamente consentida e legitimada pela força do (mau) hábito masculino mas na consequência da fraqueza feminina, na culpa imputada a quem nunca teve voz activa. O léxico arcaico e folclórico constrói imagens brutalmente cruas, retratos em carne viva de vícios grotescos e de pulsões animalescas. É sabido que sejam elas esposas, filhas, irmãs ou mães, a procriação converte-se no fim último de qualquer mulher, que se resume a um estatuto de fêmea, desejando-se silenciosa e submissa, anuindo incondicionalmente às violências que sobre elas são exercidas, «e se lhe dei o primeiro correctivo de mão na cara não foi porque não a amasse, e disse-lho, existe amor entre nós, assim te aceitei por decisão de meu pai que quer o melhor para mim, mas deus quis que eu fosse este homem e tu a minha mulher, como tal está nas minhas mãos completar tudo o que no teu feitio está incompleto, e deverás respeitar-me para que sejas respeitada. Nada do que te disser deve ser posto em causa, a menos que enlouqueças e me autorizes a pôr-te fim. (.p.69).
Mesmo ciente de que «o amor é uma maldade dos homens porque junta as mulheres aos homens numa direcção que só a eles compete» (p. 223) Serapião apaixonou-se por ermesinda, a mais bela das mulheres da aldeia: «senti uma felicidade absoluta, uma felicidade infinita como se possível fosse que, ali no meio de nada e deitados para a solidão estivéssemos no paraíso. Senti uma felicidade assim, como se, mais ainda, fosse possível não querer ver os defeitos de uma mulher e amá-la e conservá-la para além do que deus queria.»p.269. No entanto, também este amor foi subjugado, violentado, pervertido, devassado e difamado…um espaço incomensurável que deu lugar a um remorso inominável…«ajoeilhei-me a seus pés e confessei que a amaria até ao fim da vida. Sim, poderia sentir remorso pela competência tão apurada usada na educação da minha mulher. Por essa sensatez de não deixar que se perdesse sem retorno. Poderia sentir remorso por essa bondade de, a cada momento, a ir buscar à razão, a fazer ver as coisas mais correctas da criação, para ajudar a encontrar o seu lugar mais humano. Poderia sentir remorso naquele instante, perante a minha ermesinda tão diferente, que muito mais descansada estaria do corpo se eu me houvesse desleixado nos bons trabalhos de ser seu marido. (p.271). O maior de todos os remorsos de Baltazar Serapião acabaria, inevitavelmente, por vir nas últimas páginas do romance quando todos se «afastaram da minha ermesinda que, imóvel, respirou menos, respirou menos, respirou menos, não respirou. A sarga mugiu de modo lancinante» (p.278)


Palavras-chave: machismo, violência, submissão, jugo, silêncio