segunda-feira, 20 de junho de 2016

A Moral Anarquista

Autor: Piotr Alexeevinch Kropotkine
Tradução, notas e prefácio: José Luís de Sousa Pérez
Título: A Moral Anarquista
Género: Ensaio político
Editora: Edições Sílabo
Lisboa, 2006
134 páginas






Resumo: O cognome de Príncipe Anarquista dado a Piotr Alexeevich Kropotkine (1842-1921) representa um percurso de vida invulgar, repleto de acções políticas e intervenções sociais polémicas, escolhas fracturantes e dissidentes de um descendente da alta aristocracia russa, que nunca calou a sua insatisfação e inconformismo[1]A Moral Anarquista apresenta as principais coordenadas de um itinerário ideológico-político, internamente diverso e complexo, nas escolas emergentes no seio da doutrina anarquista (individualismo, colectivismo, mutualismo...). Apesar disso, o elemento unificador e primordial deste programa assenta na organização de uma sociedade sem mediação de uma autoridade coerciva, nomeadamente a do Estado. Kropotkine afigura-se como expoente principal do anarquismo comunista ou anarco-comunismo, que privilegiava as necessidades de cada um frente a outras correntes doutrinárias que eram preferencialmente defensoras da distribuição dos bens de forma proporcional ao tempo de trabalho do indivíduo. O anarquista russo defendia também que as necessidades deveriam ser determinadas por associações voluntárias de trabalhadores, no que diz respeito à produção, e em comunas locais no que se refere ao consumo. Impera, inevitavelmente, uma questão que não se satisfaz inteiramente (ou pelo menos explicitamente) em nenhuma das reflexões ao longo dos ensaios: qual é o modelo económico que viabiliza a instituição e a preservação dos valores de justiça e de equidade nas relações inter-pessoais na sociedade? A corrente kropotkiana desnuda, no entanto, alguns problemas nevrálgicos associados a esta questão soberana. O optimismo impetuoso em relação natureza humana, esbatido pelas outras escolas anarquistas ou até na doutrina marxista-leninista, é para Kropotkine um ponto de partida seguro e irrevogável.
No primeiro capítulo em que se questiona a moral enquanto momento de crise social, o pensador russo indaga por que razão deve a moral ser obrigatória ou imposta, levantando o véu para o capítulo seguinte, sobre a procura do prazer próprio, em que considera a moral algo muito mais intrínseco à natureza humana do que uma construção político, religiosa ou até social. Neste ponto, há que considerar que os actos dos homens são sempre o resultado de uma luta interior entre dois elementos hostis e de dialécticas insanáveis. O Homem é por isso tão ou mais virtuoso quando deixa vencer na alma a consciência em detrimento da carne e das paixões. Por muito diferentes que sejam as duas acções, no que se refere ao resultado para a humanidade, a verdade é que o móbil sempre foi a procura de prazer. Perguntamo-nos então neste momento, onde reside nesta ilação o optimismo pela natureza humana aparentemente sequiosa de prazer próprio e hedonista. Se assumirmos que procurar o prazer é o mesmo que evitar uma dor, agir em prol e benefício do outro pode trazer satisfação quando se evita o sofrimento dos outros.
No capítulo seguinte, sobre o Bem e o Mal, desconstrói-se este par agónico tantas vezes associado à ideia de punição, castigo ou recompensa, uma herança religiosa e até mitológica. Estes dois conceitos podem assumir-se como produtos naturais e Kropotkine acredita que não é uma distinção estritamente humana, podendo ser alargada em toda a biodiversidade, a peixes, insectos, aves ou mamíferos, e exemplifica evocando Auguste Henri Forel (1848-1931), um observador de formigas. Este médico demonstrou e confirmou nas suas várias experiências que uma formiga que se enfartou de mel ao encontrar outra de ventre vazio tem o dever de vomitar o mel para que as outras se possam satisfazer. Caso a formiga não proceda desta forma, é mal tratada como se de um inimigo da própria espécie se tratasse. Exemplos como este multiplicam-se - pardais, as marmotas, entre tantos outros - e desde animais considerados inferiores até aos mais desenvolvidos. 
Em suma, a moral pode resumir-se do seguinte modo, «faz aos outros aquilo que quererias que te fizessem a ti nas mesmas circunstâncias». Daqui nasce o princípio da solidariedade, desenvolvido no capítulo seguinte, o bom é aquilo que é útil para a sociedade e o mau aquilo que lhe é nocivo. É certo, que na biodiversidade a águia devora o pardal, o lobo devora as marmotas mas as águias e os lobos ajudam-se entre si para caçar e os pardais e as marmotas solidarizam-se também contra os animais predadores. No mundo animal e humano, a lei do apoio mútuo constitui a base do progresso e, tal como a coragem e a iniciativa individual que dele resultam, assegura a vitória e a sobrevivência da espécie. A competição entre espécies não invalida por isso a cooperação entre semelhantes, concluindo-se que os costumes e os instintos são os reguladores da acção em sociedade sem que para isso seja necessário recorrer a qualquer tipo de leis ou governo. Encaminhando-nos para o sexto capítulo, percebemos que a anarquia não conflitua com a moralidade, nem tão pouco implica a sua extinção.
O príncipe anarquista ensaia neste seu tratado uma tentativa de recondução da evolução humana, ciente de que a liberdade e o poder de agir são simultâneos ao dever agir. O trabalho finaliza com um capítulo sobre a distinção entre altruísmo e egoísmo, e citando Herbert Spencer (1820-1903), reitera que o bem do indivíduo se confunde com o bem da espécie e se os dois não coincidissem a própria evolução do reino animal nunca poderia ter acontecido. O desígnio de cada indivíduo é viver uma vida intensa e plena, e a intensidade é proporcional à sociabilidade, na mais perfeita identificação de si com todos aqueles que o rodeiam.




[1] Filho do general do exército imperial russo, descendia de uma das famílias mais antigas da nobreza russa, da ancestral casa real dos Rurik. Desde tenra idade, ainda ele frequentava o Corpo de Pajens, instituição militar privilegiada da Rússia Imperial, Kropotkine detinha já a fama de rebelde. Apesar da carreira militar não corresponder às suas aspirações, considerava este um percurso favorável para quem pretendia instituir a alteração de leis e medidas que produzissem o melhoramento da vida das classes sociais mais pobres. Para este efeito, escolheu um trabalho administrativo no regimento cossaco, na Sibéria, experiência que em muito contribuiu para o seu amadurecimento ideológico e evolução social, devido ao facto de ter sido assistente pessoal do general Koukel. Este general siberiano não só favoreceu o acesso de Kropotkine a obras de Mikhail Bakinine, Alexander Herzen como se aproximava também do ideal reformador liberal, que poderia vir a introduzir alterações radicais na administração russa, como desejava o jovem Kropotkine.
Entre 1868-1870, Kropotkine dedica-se aos seus estudos e observações realizando viagens pela Finlândia, Suécia e em 1872, na Suíça, filia-se na Associação Internacional dos Trabalhadores, que visava a união de diversos grupos políticos de esquerda e sindicatos com vista à adopção de medidas que melhorassem as condições da classe trabalhadora. No entanto, este ideal socialista ainda não satisfazia as suas aspirações e, em seguida, entrou em contacto com a Federação Jura, a mais importante e anti-autoritária secção anarquista.
De regresso à sua terra natal e munido de uma bagagem ideológica considerável inicia agora uma intensa actividade de difusão de propaganda anarquista através do Círculo de Tchaikovsky, uma sociedade literária de auto-educação dos revolucionários russos formada por jovens burgueses e da aristocracia procurando inculcar nos espíritos desinformados os ideais de revolta e de liberdade contra a opressão czarista.
Em 1877, Kropotkine desloca-se a Paris para participar activamente no despontar do movimento socialista francês, fundando juntamente com Paul Brosse o jornal internacional L’Avant garde e participando, nesse mesmo ano, no congresso de tendência bakineana em Verviers, tendo regressado à Suiça em 1878. No ano seguinte, editou para a Federação Jura o jornal Le Révolté e em 1887 o jornal muda de nome para La révolte e finalmente para Les temps nouveaux (1895).
Em 1881, Ktopotkine assiste em Inglaterra ao Congresso Internacional Anarquista e apelou ao empenho de actividades orientadas para a deposição do poder vigente, defendendo a necessidade do assassinato do czar russo Alexandre II, o que viria a acontecer efectivamente pouco tempo depois. Em virtude do assassinato do czar russo, Kropotkine virá a ser expulso pelo governo suíço devido às suas declarações pró-violência contra a realeza russa. Na verdade, o Principe Anarquista acreditava que uma revolta do povo oprimido era mais eficaz do que um voto. Continuou a sua demanda por Inglaterra, França, onde foi novamente detido juntamente com cinquenta e nove anarquistas, devido ao atentado ocorrido na Praça Bellecour, em Lyon, actividade na qual não tinha sequer participado. Ficou detido e nesse tempo dedicou-se a ensinar cosmografia, geometria, física, línguas aos companheiros, reiterando a necessidade da difusão do conhecimento enquanto etapa e instrumento fundamentais para o processo revolucionário das massas.
A 18 de Janeiro de 1886, deu-se a libertação do anarquista russo, graças à pressão de figuras conhecidas do panorama social, político e intelectual francês e inglês. Inglaterra seria o seu próximo destino e aí terá permanecido com a sua esposa Sophie Ananief durante trinta anos. Na década de 1890, as actividades de Kropotkine centram-se na escrita e além da actividade literária viaja para o Canadá e para os Estados Unidos, em 1897, leccionando e dando palestras sobre as eras glaciares como forma de assistir a congressos anarquistas nesses mesmos países. Entre 1909 e 1914 regressa à Suíça abstendo-se de participar em qualquer actividade anarquista.
Após a Revolução de Fevereiro, primeira etapa da Revolução Russa de 1917, cujo resultado imediato foi a deposição do Czar Nicolau II, Kropotkine é calorosamente acolhido no seu país de origem, sendo-lhe inclusivamente oferecido o cargo de Ministro da Educação no governo provisório, pasta que rejeitou sem hesitação. A promessa de erradicação de todo o tipo de autoridade política opressiva converteu-se numa outra, no fundo igual, a centralização despótica do poder.