Autor: Piotr Alexeevinch Kropotkine
Tradução, notas e prefácio: José Luís de
Sousa Pérez
Título: A Moral
Anarquista
Género: Ensaio político
Editora: Edições Sílabo
Lisboa, 2006
134 páginas
Resumo:
O
cognome de Príncipe Anarquista dado a
Piotr Alexeevich Kropotkine (1842-1921) representa um percurso de vida
invulgar, repleto de acções políticas e intervenções sociais polémicas, escolhas
fracturantes e dissidentes de um descendente da alta aristocracia russa, que nunca
calou a sua insatisfação e inconformismo[1]. A
Moral Anarquista apresenta as
principais coordenadas de um itinerário ideológico-político, internamente diverso
e complexo, nas escolas emergentes no seio da doutrina anarquista
(individualismo, colectivismo, mutualismo...). Apesar disso, o
elemento unificador e primordial deste programa assenta na organização de uma sociedade sem
mediação de uma autoridade coerciva, nomeadamente a do Estado. Kropotkine
afigura-se como expoente principal do anarquismo comunista ou anarco-comunismo,
que privilegiava as necessidades de cada um frente a outras correntes doutrinárias
que eram preferencialmente defensoras da distribuição dos bens de forma
proporcional ao tempo de trabalho do indivíduo. O
anarquista russo defendia também que as necessidades deveriam ser determinadas por
associações voluntárias de trabalhadores, no que diz respeito à produção, e em
comunas locais no que se refere ao consumo. Impera, inevitavelmente, uma
questão que não se satisfaz inteiramente (ou pelo menos explicitamente) em
nenhuma das reflexões ao longo dos ensaios: qual é o modelo económico que viabiliza
a instituição e a preservação dos valores de justiça e de equidade nas relações
inter-pessoais na sociedade? A corrente kropotkiana desnuda, no entanto, alguns problemas
nevrálgicos associados a esta questão soberana. O optimismo impetuoso em
relação natureza humana, esbatido pelas outras escolas anarquistas ou até na
doutrina marxista-leninista, é para Kropotkine um ponto de partida seguro e irrevogável.
No
primeiro capítulo em que se questiona a
moral enquanto momento de crise social, o pensador russo indaga por que
razão deve a moral ser obrigatória ou imposta, levantando o véu para o capítulo
seguinte, sobre a procura do prazer
próprio, em que considera a moral algo muito mais intrínseco à natureza
humana do que uma construção político, religiosa ou até social. Neste ponto,
há que considerar que os actos dos homens são sempre o resultado de uma luta
interior entre dois elementos hostis e de dialécticas insanáveis. O Homem é por
isso tão ou mais virtuoso quando deixa vencer na alma a consciência em
detrimento da carne e das paixões. Por muito diferentes que sejam as duas
acções, no que se refere ao resultado para a humanidade, a verdade é que o móbil
sempre foi a procura de prazer. Perguntamo-nos então neste momento, onde reside
nesta ilação o optimismo pela natureza humana aparentemente sequiosa de prazer próprio
e hedonista. Se assumirmos que procurar o prazer é o mesmo que evitar uma dor,
agir em prol e benefício do outro pode trazer satisfação quando se evita o
sofrimento dos outros.
No
capítulo seguinte, sobre o Bem e o Mal, desconstrói-se este par agónico tantas
vezes associado à ideia de punição, castigo ou recompensa, uma herança religiosa
e até mitológica. Estes dois conceitos podem assumir-se como produtos
naturais e Kropotkine acredita que não é uma distinção estritamente humana,
podendo ser alargada em toda a biodiversidade, a peixes, insectos, aves ou mamíferos, e exemplifica
evocando Auguste Henri Forel (1848-1931), um observador de formigas. Este médico
demonstrou e confirmou nas suas várias experiências que uma formiga que se
enfartou de mel ao encontrar outra de ventre vazio tem o dever de vomitar o mel
para que as outras se possam satisfazer. Caso a formiga não proceda desta
forma, é mal tratada como se de um inimigo da própria espécie se tratasse.
Exemplos como este multiplicam-se - pardais, as marmotas, entre tantos outros -
e desde animais considerados inferiores até aos mais desenvolvidos.
Em suma, a moral pode resumir-se do seguinte modo, «faz aos outros aquilo que quererias que te fizessem a ti nas mesmas circunstâncias». Daqui nasce o princípio da solidariedade, desenvolvido no capítulo seguinte, o bom é aquilo que é útil para a sociedade e o mau aquilo que lhe é nocivo. É certo, que na biodiversidade a águia devora o pardal, o lobo devora as marmotas mas as águias e os lobos ajudam-se entre si para caçar e os pardais e as marmotas solidarizam-se também contra os animais predadores. No mundo animal e humano, a lei do apoio mútuo constitui a base do progresso e, tal como a coragem e a iniciativa individual que dele resultam, assegura a vitória e a sobrevivência da espécie. A competição entre espécies não invalida por isso a cooperação entre semelhantes, concluindo-se que os costumes e os instintos são os reguladores da acção em sociedade sem que para isso seja necessário recorrer a qualquer tipo de leis ou governo. Encaminhando-nos para o sexto capítulo, percebemos que a anarquia não conflitua com a moralidade, nem tão pouco implica a sua extinção.
Em suma, a moral pode resumir-se do seguinte modo, «faz aos outros aquilo que quererias que te fizessem a ti nas mesmas circunstâncias». Daqui nasce o princípio da solidariedade, desenvolvido no capítulo seguinte, o bom é aquilo que é útil para a sociedade e o mau aquilo que lhe é nocivo. É certo, que na biodiversidade a águia devora o pardal, o lobo devora as marmotas mas as águias e os lobos ajudam-se entre si para caçar e os pardais e as marmotas solidarizam-se também contra os animais predadores. No mundo animal e humano, a lei do apoio mútuo constitui a base do progresso e, tal como a coragem e a iniciativa individual que dele resultam, assegura a vitória e a sobrevivência da espécie. A competição entre espécies não invalida por isso a cooperação entre semelhantes, concluindo-se que os costumes e os instintos são os reguladores da acção em sociedade sem que para isso seja necessário recorrer a qualquer tipo de leis ou governo. Encaminhando-nos para o sexto capítulo, percebemos que a anarquia não conflitua com a moralidade, nem tão pouco implica a sua extinção.
O
príncipe anarquista ensaia neste seu tratado uma tentativa de recondução da
evolução humana, ciente de que a liberdade e o poder de agir são simultâneos ao
dever agir. O trabalho finaliza com um capítulo sobre a distinção entre
altruísmo e egoísmo, e citando Herbert Spencer (1820-1903), reitera que o bem
do indivíduo se confunde com o bem da espécie e se os dois não coincidissem a
própria evolução do reino animal nunca poderia ter acontecido. O desígnio de
cada indivíduo é viver uma vida intensa e plena, e a intensidade é proporcional
à sociabilidade, na mais perfeita identificação de si com todos aqueles que o
rodeiam.
[1] Filho do general do exército
imperial russo, descendia de uma das famílias mais antigas da nobreza russa, da
ancestral casa real dos Rurik. Desde tenra idade, ainda ele frequentava o Corpo de
Pajens, instituição militar privilegiada da Rússia Imperial, Kropotkine detinha já a fama de rebelde. Apesar da carreira militar não corresponder às suas aspirações,
considerava este um percurso favorável para quem pretendia instituir a alteração
de leis e medidas que produzissem o melhoramento da vida das classes sociais
mais pobres. Para este efeito, escolheu um trabalho administrativo no regimento
cossaco, na Sibéria, experiência que em muito contribuiu para o seu
amadurecimento ideológico e evolução social, devido ao facto de ter sido
assistente pessoal do general Koukel. Este general siberiano não só favoreceu o
acesso de Kropotkine a obras de Mikhail Bakinine, Alexander
Herzen como se aproximava também do ideal reformador liberal, que poderia vir a
introduzir alterações radicais na administração russa, como desejava o jovem
Kropotkine.
Entre 1868-1870, Kropotkine
dedica-se aos seus estudos e observações realizando viagens pela Finlândia,
Suécia e em 1872, na Suíça, filia-se na Associação Internacional dos
Trabalhadores, que visava a união de diversos grupos políticos de esquerda e
sindicatos com vista à adopção de medidas que melhorassem as condições da
classe trabalhadora. No entanto, este ideal socialista ainda não satisfazia as
suas aspirações e, em seguida, entrou em contacto com a Federação Jura, a mais
importante e anti-autoritária secção anarquista.
De regresso à sua terra natal e
munido de uma bagagem ideológica considerável inicia agora uma intensa actividade de
difusão de propaganda anarquista através do Círculo de Tchaikovsky, uma
sociedade literária de auto-educação dos revolucionários russos formada por
jovens burgueses e da aristocracia procurando inculcar nos espíritos
desinformados os ideais de revolta e de liberdade contra a opressão czarista.
Em 1877, Kropotkine desloca-se a
Paris para participar activamente no despontar do movimento socialista francês,
fundando juntamente com Paul Brosse o jornal internacional L’Avant garde e participando, nesse mesmo ano, no congresso de tendência
bakineana em Verviers, tendo regressado à Suiça em 1878. No ano seguinte, editou
para a Federação Jura o jornal Le Révolté
e em 1887 o jornal muda de nome para La
révolte e finalmente para Les temps
nouveaux (1895).
Em 1881, Ktopotkine assiste em
Inglaterra ao Congresso Internacional Anarquista e apelou ao empenho de
actividades orientadas para a deposição do poder vigente, defendendo a
necessidade do assassinato do czar russo Alexandre II, o que viria a acontecer efectivamente
pouco tempo depois. Em virtude do assassinato do czar russo, Kropotkine virá a
ser expulso pelo governo suíço devido às suas declarações pró-violência contra
a realeza russa. Na verdade, o Principe
Anarquista acreditava que uma revolta do povo oprimido era mais eficaz do que
um voto. Continuou a sua demanda por Inglaterra, França, onde foi novamente
detido juntamente com cinquenta e nove anarquistas, devido ao atentado ocorrido
na Praça Bellecour, em Lyon, actividade na qual não tinha sequer participado.
Ficou detido e nesse tempo dedicou-se a ensinar cosmografia, geometria, física,
línguas aos companheiros, reiterando a necessidade da difusão do conhecimento enquanto
etapa e instrumento fundamentais para o processo revolucionário das massas.
A 18 de Janeiro de 1886, deu-se a
libertação do anarquista russo, graças à pressão de figuras conhecidas do
panorama social, político e intelectual francês e inglês. Inglaterra seria o
seu próximo destino e aí terá permanecido com a sua esposa Sophie Ananief
durante trinta anos. Na década de 1890, as actividades de Kropotkine centram-se
na escrita e além da actividade literária viaja para o Canadá e para os Estados
Unidos, em 1897, leccionando e dando palestras sobre as eras glaciares como
forma de assistir a congressos anarquistas nesses mesmos países. Entre 1909 e 1914
regressa à Suíça abstendo-se de participar em qualquer actividade anarquista.
Após a Revolução de Fevereiro,
primeira etapa da Revolução Russa de 1917, cujo resultado imediato foi a
deposição do Czar Nicolau II, Kropotkine é calorosamente acolhido no seu país
de origem, sendo-lhe inclusivamente oferecido o cargo de Ministro da Educação
no governo provisório, pasta que rejeitou sem hesitação. A promessa de
erradicação de todo o tipo de autoridade política opressiva converteu-se numa
outra, no fundo igual, a centralização despótica do poder.