domingo, 29 de maio de 2016

O Regresso de Penélope

Autor: António Vieira
Título: O regresso de Penélope
Género: Romance
Editora: Edições Colibri
Lisboa, 2000
151 páginas



«Como era fácil ligar-se, terrível desligar-se; 
fácil perder-se e difícil encontrar-se…»

«Belo e sinistro me parece o mundo conforme a posição que oferece ao nosso olhar: volve de luz em sombra e sombra em luz. Mas se lutamos é porque ainda o queremos transformar e a nós nele”


Resumo: António Vieira desafia o leitor a descobrir e a actualizar as matrizes clássicas, ao longo de doze capítulos (ou serão cantos?), evocando inúmeras intertextualidades épicas à contraluz da Odisseia de Homero. Este romance ensaístico narra uma viagem, em pleno século XXI, da heroína grega, Penélope. Esta jornalista juntamente com a colega de profissão, a nórdica Inger, fazia a cobertura de uma sublevação em Singapura, quando foram ambas surpreendidas pela informação da CNN, anunciando o furacão Helena. Juntam-se a elas a indiana Kemala e a japonesa Yasuko, que se insurgiam também contra o poder político vigente, duas filipinas, Raïssa e Sarani, e ainda uma malaia, Dewi, que fugiam por sua vez à violência do Islão e à condição de escravas. 
O périplo destas seis argonautas, no veleiro Bunga Manis (Flor Doce), é fértil em aventuras, expedientes e agruras. Mutatis mutandis, Penélope vai (re)conhecer os episódios outrora percorridos por Ulisses, (Cilesso, digo!) que se encontra agora em Catai, cerzindo as suas teias informáticas. Verdade seja dita, «Cilesso fora por muito tempo o magneto que movera nela a agulha da vontade na bússola da Sorte por que gizara a rota. Guiavam-na então o amor, a ternura, a amizade por um homem bem próximo de afecto mas distante, que escapara incólume de uma calamidade e que a esperava» ( p.144). «Ambos tinham decidido um dia escrever conjuntamente um livro e habitar o mesmo espaço literário – o que significava misturarem a percepção do mundo e deles próprios com o horizonte do desejo e a utopia até ao seu extremo e conjectural limite: trabalho que, sabiam-no, só podia provir do apogeu do amor…e eis que, num momento decisivo, estavam separados em pontos opostos da Terra, senão do próprio Ser, repartidos talvez entre o reino da vida e dos mortos» (p.39). No entanto, este ideal conjunto esteve sempre comprometido e vaticinado porque Penélope nunca poderia imaginar que uma viagem fosse afinal uma «vida interior à própria vida» na qual estamos todos condenados à incomunicabilidade e ao isolamento dos nossos desejos, únicos, irrenunciáveis, pessoais e intransmissíveis.
Identificamos muitas ressonâncias homéricas neste Regresso de Penélope, anunciadas desde logo pelo avesso do próprio título ou pelos muitos episódios como o ataque dos Lestrígones, dos piratas “Ciclopes” - dos quais apenas se libertaram graças aos expedientes da líder - passando pelas feitiçarias de Erick na ilha flutuante e luxuriante de Yggoia (qual sedução de Circe), ou ainda o canto das sereias a que Penélope resiste amarrada ao mastro. Na ilha de Yggoia, Yasuko foi a única que não se entregou ao jogo como confirma Penélope: “Yasuko, querida amiga: permanecer assim fora da História, protegidas do jugo dos estados, das normas da cultura, de trabalhos e deveres, é um doce interregno que nos restitui à natureza. Devias ter experimentado também tu, fruído da doçura de jogar e confiar-te ao Jogo…tu que não confias nos jogos reais, como os de Kemala, nem nos jogos de astúcia, como os das nossas companheiras filipinas; nem te confias nunca ao jogo grave e perigoso do amor, a que me tenho dado, doce e violento mais que tudo o que jogar se possa…Tu, tão bela!» Apesar disso, esta obra é muito mais do que um desfio à leitura épica na retrospectiva de Homero, é um comprometimento com o nosso tempo, nesta análise crítica e nostálgica, à distância do mundo edénico da Grécia antiga. Estas heroínas representam várias culturas nas suas diversas circunstâncias em torno de um único anseio: a conquista da liberdade. Por esse facto, a denúncia da violência, da barbárie da civilização machista e opressora, a distância e os avatares desta civilização tecnológica, são o móbil e o interesse soberano nesta obra. Como afirma Kemala: «- Corremos entre dois riscos: a falta de lei, que cria a lei da selva; e a lei implacável da sharia, que nos faria escravas. Os excessos do desvio, como os rigores da norma, enchem de ciladas o século emergente» (p.29).
Já no final da viagem, chegando à costa da Austrália, Penélope abriu a caixa madrepérola de “Pandora” e entornou para o mar a semente letal, negra e brilhante, dádiva de Yasuko e que mais não era do que o símbolo da escravidão e da tortura de que os deuses a tinham poupado. Assim se amenizaram os contrastes abruptos entre a aflição e a esperança, entre a angústia sem consolo e o nirvana, na hibridização de todos fenómenos e acontecimentos: pois haverá regresso mais auspicioso do que este?

Palavras-chave: Penélope, viagem, odisseia do avesso, liberdade, igualdade, mulheres