terça-feira, 1 de março de 2016

A Queda

Autor: Albert Camus
Título: A Queda
Género: romance filosófico
Editora: Livros do Brasil – Porto Editora
2015
85 páginas




«A indignação, o talento, a emoção que eu despendia livravam-me, em compensação, de qualquer dívida em relação a eles. Os juízes condenavam, os réus expiavam e eu, isento de qualquer obrigação, de julgamento e de sanção, eu imperava, livremente, numa luz edénica».
A Queda, p. 20.

Resumo: Albert Camus foi agraciado com o Prémio Nobel em 1957, um ano após a publicação daquela que viria a ser a sua última obra ficcional e talvez a mais baudelairiana, A Queda. O filósofo argelino foi reconhecido e enaltecido pela lucidez e ironia com que ilumina os traços mais obscuros da natureza humana e pela forma satírica e, por vezes até, virulenta com que espelha os problemas de consciência, fruto das escolhas mais fracturantes e reveladoras do carácter do Homem. Nesta obra, ecoa uma acidez oscilante entre a maldade e a culpa que tentam ser legitimadas, através da manipulação e da subversão de argumentos. A Queda é um caleidoscópio da decadência moral, da sujeição e transgressão sociais, com a agonia inerente a um paradigma pouco humanista e tão contemporâneo. 
O foco de luz incide no monólogo dramático de um Juíz-penitente - assim auto-designado dada a sua dupla função de vítima e de carrasco - que se encontra em Amesterdão, num bar de marinheiros chamado Mexico-City. De repente, enceta uma conversa com um desconhecido, que apesar de não proferir uma única palavra se faz presente em toda a obra, enquanto interlocutor silencioso mas companheiro de todas as reflexões do protagonista Jean-Baptiste Clamence. Nas últimas páginas do livro, revela-se um pouco da identidade deste ouvinte, numa anagnórise aliás, pouco abonatória para ambos: «Ah! Eu já suspeitava, veja bem. Esta estranha afeição que eu sentia por si, tinha portanto sentido. O senhor exerce em Paris a bela profissão de advogado. Eu bem sabia que éramos da mesma raça. Não somos todos nós semelhantes, falando sem cessar e para ninguém, enfrentando sempre as mesmas perguntas, embora conheçamos de antemão as respostas?».
Ao longo de várias deambulações pelos canais e ruas de Amesterdão, o Juíz-penitente vai abrindo o livro da sua vida, partilhando experiências e lembranças dos seus tempos idos em Paris e confessa um episódio muito particular, que o atormenta e condiciona toda a sua argumentação. Entre preâmbulos e divagações, é reservado um importante espaço cénico-literário para confissões, críticas e análises das suas relações com as mulheres: «Estas damas, por detrás das vidraças? O sonho, meu caro senhor, o sonho com pouco esforço, a viagem às Índias! Estas criaturas perfumam-se com especiarias. Entra-se, elas correm as cortinas e a navegação começa. Os deuses descem sobre os corpos nus e as ilhas vão à deriva, dementes encimadas por uma cabeleira desgrenhada de palmeiras ao vento. Experimente».
A sociedade é alvo de um detalhado escrutínio, nas relações tendenciosas, viciadas e perversas, impulsionadoras da queda de qualquer Homem: «Uns gritam “Ama-me!” Outros “Não me ames!” mas há uma certa raça, a pior e a mais infeliz “Não me ames e sê-me fiel”…encontramo-nos um dia numa situação de possuir sem verdadeiramente desejar. Acredite-me, para certos seres, pelo menos, não possuir o que se não deseja é a coisa mais difícil do mundo». Apenas no que se refere ao hedonismo, o Homem consegue ser fiel a si mesmo, já que nenhum homem é hipócrita nos prazeres: «O ato de amor, por exemplo, é uma confissão. Aí o egoísmo grita, ostensivamente, a vaidade pavoneia-se, ou então revela-se aí a verdadeira generosidade».  
Esta plêiade argumentativa, bem construída e coerente ainda que esteja assente na subversão das premissas, representa a imagem do homem moderno da nossa era, fruto de uma sociedade que relega a verdade em prol do verosímil e onde a sedução da palavra é feita pela forma sem corresponder necessariamente a qualquer essência: «As mentiras não conduzem finalmente à via da verdade? E as minhas histórias, verdadeiras ou falsas, não tenderão todas para o mesmo fim, não terão o mesmo sentido? Que importa, então, que sejam verdadeiras ou falsas, se nos dois casos, são significativas do que fui e do que sou? Vê-se mais claro, por vezes, naquele que mente do que no que fala verdade. A verdade cega, como a luz. A mentira pelo contrário, é um belo crepúsculo que realça cada objecto».
A queda do protagonista é sinónimo de fuga, fraqueza e perversão, revestida de uma falsa ideia de liberdade e autonomia mas no fundo não é mais do que uma uma irreversível sujeição: «Aceitei a duplicidade em vez de ficar desolado com ela. Nela me instalei, pelo contrário, e nela achei o conforto que busquei durante toda a minha vida. O essencial é poder permitir-se tudo, mesmo se for preciso proclamar, de tempos a tempos, em altos brados, a própria indignidade. Permito-me tudo… Não mudei de vida, continuo a amar-me e a servir-me dos outros. Só que a confissão das minhas culpas me permite recomeçar de uma maneira mais leve e gozar duplamente a minha natureza, primeiro, e em seguida, um encantador arrependimento».
Qual foi então o episódio que tanto traumatiza, inquieta e atormenta a consciência de Clamence? A queda de uma mulher nas águas do rio Sena e a sua voluntária omissão e hesitação quando se preparava para a ajudar. Na outra face deste arrependimento está uma hipocrisia e egoísmo, que definem os traços de personalidade de um homem perturbado, decadente e em vertigem na própria queda: «Pronuncie o senhor mesmo as palavras que, há anos, não cessam de retinir nas minhas noites e que eu direi enfim pela sua boca: «Ó pequena, deita-te de novo à água, para que eu tenha pela segunda vez a sorte de nos salvar a ambos!» pela segunda vez, hein?, que imprudência! Suponha, caro coleg,a que nos tomam à letra. Teríamos de cumprir. Brr…! A água está tão fria! Mas tranquilizemo-nos! É tarde de mais, agora, será sempre tarde de mais. Felizmente!»


Palavras chave: Monólogo, Juíz-penitente, Paris, Amesterdão, hipocrisia, peso de consciência.