Autor: Italo Calvino
Título: As Cidades
Invisíveis
Género: Romance
Editora: Dom Quixote -
LeYa
2015
174 páginas
- Viajas para
reviver o teu passado? – era agora a pergunta do Kan, que também podia ser
formulada assim: - Viajas para achar o teu futuro?
E a resposta de
Marco: - O algures é um espelho em negativo.
O viajante
reconhece o pouco que é seu, descobrindo o muito que não teve nem terá.
As Cidades
Invisíveis:
p. 37
Resumo:
As Cidades Invisíveis
de Italo Calvino é, consensualmente, uma das obras primas do século XX e espelha
todo o preciosismo e fulgor literários do realismo mágico. O autor coloca Marco
Polo diante do imperador dos tártaros Kublai Khan a quem o viajante descreve,
primorosamente e com requinte no detalhe, um catálogo de lugares, um inventário
de nomes toponímicos, uma cartografia de cidades.
Tal
como num jogo de xadrez em que a jogada seguinte depende da anterior do adversário,
e depois das exuberantes descrições de Marco Polo, a mente do Grão Kan
começava, por sua conta e risco, a desmontar as cidades peça a peça, na ânsia
de as reconstruir de um outro modo, substituindo características, deslocando formas e
invertendo os sentidos em busca de uma (sua) cidade ideal. Neste
exercício de imaginação e projecção de um novo império, Kublai Khan ia-se conhecendo e reconhecendo,
porque todas as cidades são como os sonhos: «todo o imaginável pode ser sonhado
mas também o sonho mais inesperado é um enigma que oculta um desejo ou o seu
contrário, um terror». Por isso, Khan inquieto perguntara a Polo: «- No dia em
que conhecer todos os símbolos – perguntou a Marco - conseguirei possuir o meu império,
finalmente? Ao que o veneziano respondera: -Sire, não acredites nisso: nesse dia serás tu mesmo
símbolo entre os símbolos».
É neste imaginário simbólico e abstracto de paradigmas mentais que as cidades desfilam ao longo de nove capítulos, exibindo a racionalidade geométrica da existência humana nas suas múltiplas viagens: «Viajando percebemos que as diferenças se perdem, cada cidade se vai parecendo com todas as cidades, os lugares trocam entre si a forma ordem distâncias, uma poeira informe invade os continentes. O teu atlas guarda intactas todas as diferenças: a provisão de qualidades que são como as letras do nome».
É neste imaginário simbólico e abstracto de paradigmas mentais que as cidades desfilam ao longo de nove capítulos, exibindo a racionalidade geométrica da existência humana nas suas múltiplas viagens: «Viajando percebemos que as diferenças se perdem, cada cidade se vai parecendo com todas as cidades, os lugares trocam entre si a forma ordem distâncias, uma poeira informe invade os continentes. O teu atlas guarda intactas todas as diferenças: a provisão de qualidades que são como as letras do nome».
A
taxonomia das cidades constrói-se mediante as múltiplas relações que estabelecem com os homens e por isso contam- se cinquenta e cinco cidades divididas pelos seguintes grupos: i) as
cidades e a memória - Diomira, Isidora, Zaira, Maurília - ii) as cidades e o desejo
- Doroteia, Anastásia, Despina, Fedora,
Zobaida – iii) as cidades e os sinais: Tamara, Zirma, Zoé, Hipácia, Olívia – iv)
as cidades subtis: Isaura, Zenóbia, Armila, Sofrónia, Octávia – v) as cidades e
as trocas: Eufémia, Cloé, Eutrópia, Ersília, Esmeraldina – vi) as cidades e os
olhos - Valdrada, Zemrude, Bauci, Filias, Moriana – vii) as cidades e o nome:
Aglaura, Leandra, Pirra, Clarice, Irene – viii) as cidades e os mortos:
Melânia, Adelma, Eusápia, Árgia, Laudomia – ix) as cidades e o céu: Eudóxia,
Bersabeia, Tecla, Períncia, Andria – x) as cidades contínuas: Leónia, Trude,
Procópia, Cecília, Pentesileia – xi) as cidades ocultas: Olinda, Raissa,
Marozia, Teodora, Berenice.
O olhar analítico e profundamente descritivo de
Marco Polo, no retrato que pinta de cada uma destas cidades não ceifa qualquer potencial fantástico, muito pelo
contrário, suscita o inebriamento por estes lugares, que ganham tamanho
realismo na imaginação do leitor. Cidades com nomes de mulheres,
umas mais fortes, outras mais frágeis, umas mais faustosas e luxuriantes,
outras mais sombrias e obscuras, mas todas únicas, indecifráveis e inesgotáveis.
Se muitas espelham a nostalgia do indivíduo na construção idílica e utópica dos
lugares, como se fosse um espaço de reencontro consigo próprio, outras desenham
arquitecturas presumíveis e verosímeis preferindo as realidades facilmente concebíveis e
palpáveis: «umas encerram o que é aceite como necessário enquanto não o é
ainda; as outras o que é imaginado como possível e no minuto a seguir já não o
é».
Da
mesma forma que encontramos cidades de existência indivisível, descobrimos
também cidades de existência dúbia e ambígua, umas parecem mais leves e etéreas, outras
mais finitas e mutáveis, umas mais rotineiras, outras mais surpreendentes. Como
se não bastasse o desdobramento deste catálogo, Marco Polo inclui ainda no
inventário todas aquelas cidades que não existindo poderiam ter existido e sobretudo um
modelo de cidade que se deduz extrapolando as utopias e as vontades de todas
as outras, uma cidade feita de excepções, impedimentos, contradições,
incongruências e contrassensos: «se uma cidade assim é o que há de mais
improvável, diminuindo o número de elementos anormais aumentam as probabilidades
de existir realmente a cidade […] mas não posso fazer avançar a minha operação
para além de um certo limite: obteria cidades demasiado verosímeis para serem
verdadeiras».
Não
esqueçamos ainda as cidades que dentro do paradoxo conseguem ser coerentes,
como Cloé, que nas suas movimentações luxuriantes continua a ser a mais casta
das cidades, ou até mesmo Esmeraldina cujas vidas rotineiras e tranquilas
decorrem sem se repetirem. Há ainda aquelas cidades que têm em si o próprio
contrário, o veneno e seu antídoto como Berenice, dotada de uma qualidade intrínseca: sendo injusta germina nela o segredo de uma cidade justa - «da minha conversa
retirarás a conclusão de que a verdadeira Berenice é uma sucessão no tempo de
cidades diferentes, alternadamente justas e injustas. Mas a coisa de que
pretendia avisar-te é outra: que todas as Berenices futuras já estão presentes
neste instante, envolvidas uma dentro da outra, apertadas empilhadas
inextricáveis».
Khan
interroga Marco Polo sobre a sua cidade italiana mas o viajante sabe que as palavras desgastam
as imagens da memória, e uma vez fixadas pelas palavras, as cidades correm os
risco de se apagar. Marco Polo tem medo de perder Veneza, se falar dela toda de uma vez, mesmo estando ciente de que talvez a tenha vindo a perder, pouco a pouco, depois de falar de tantas outras cidades. Afinal Veneza estivera sempre no seu olhar sobre todas as outras.
No
fim de todas as viagens e deslocações, a cidade que continua a seduzir, verdadeiramente, Marco
Polo é aquela que é descontínua no tempo e no espaço, a única que não pode
deixar de ser desejada, procurada e idealizada, por ser a mais utópica porque «o catálogo das formas é
infinito: enquanto houver uma forma que não tenha encontrado a sua cidade,
continuarão a nascer novas cidades. Onde as formas esgotam as suas variações e
se desfazem, começa o fim das cidades». Os limites são o segredo e a medida
para uma imaginação livre e infindável pois «só se conheceres o resíduo da
infelicidade, que nenhuma pedra preciosa pode compensar, poderás computar o
número exacto de quilates que deve ter o diamante final.»
Palavras chave: realismo mágico, cidades, utopia, viagens da imaginação, Marco Polo.