sexta-feira, 1 de janeiro de 2016

A Instrumentalina

Autor: Lídia Jorge
Título: A Instrumentalina
Género: Conto
Editora: LeYa
2015 (3ª edição)
46 páginas







«Como se o tempo de repente dum outro modo fluísse, ou mesmo a qualidade da sua hora mudasse, e uma coisa perdida aparecesse, uma dúvida se quebra, um amor acaba, e outro que nunca se tinha imaginado, de repente, nasce».

Resumo: «Nunca se sabe o que uma viagem pode trazer ao íntimo do coração.»: são estas as palavras que abrem o conto de Lídia Jorge, prometendo e adivinhando desde logo a ternura e a comoção pelos afectos a que já nos tem habituado. No entanto esta narrativa breve distingue-se da restante obra ficcional da escritora como uma peça autónoma, traduzida e difundida em várias línguas – inglês, francês, italiano, húngaro, búlgaro e alemão –, tendo sido inclusivamente considerada uma obra-prima do conto.
Idalina…Rosalina…Constantina…não, Instrumentalina…uma força fonética que lhe dá quase o estatuto de nome próprio, um simbolismo tão intenso que lhe confere quase uma existência ontológica: afinal ela é a protagonista e personagem principal das memórias da narradora, Greta Garbo, como lhe chamava o tio. O selim, a roda pedaleira, a imagem do retorcido guiador, objectos soltos «que sempre tivemos por separados atam as pontas, imagens que bóiam nas nossas vidas sem ligação juntam-se e criam uma nova sequência com sentido». O cenário é o bar do Royal York Hotel e a narradora encontra-se ali sentada numa mesa, olhando quem entra quem sai, movimentações e deslocações que não a deixaram indiferente a uma viagem ao passado e eis que num ápice se reencontrara num outro tempo, num outro espaço. Aquela bicicleta marca Deka, a sua Kodak e a máquina de escrever quase que esculpiam o retrato e os traços de carácter do tio Fernando. Certo dia foi ela a escolhida, de entre todos os sobrinhos, para acompanhar o tio num passeio na Instrumentalina, pelos extensos campos de margaridas. O quadro das memórias vai-se tornando mais nítido e vai-se presentificando no encaixe de todos estes objectos, o Citroën cinza, aquela moeda dourada, que mais não são do que a consubstanciação de muitos episódios da sua infância. 
É certo que a materialidade de um objecto existe apenas enquanto este é tangível mas pode eternizar-se se conseguir chegar à memória dos afectos. Mesmo estando quebrada a Instrumentalina e mesmo desaparecido o tio Fernando, andava ainda na casa dos seus vinte anos, nunca se fecha a possibilidade de nos surpreendermos com novos sentidos que vão além da nossa própria imaginação. Se é com esse aviso que começa o conto é com essa mesma certeza que termina: «Uma coisa fria, como se o meu coração se dirigisse não para um homem mas para um lago empurrava-me a vista na direcção do bengaleiro. Preparava-me para um encontro singular como nunca havia imaginado ser possível. Ele ali estava. Devagar, um cavalheiro de meia-idade, atrás do vidro transparente retirava o seu abafo, dobrava-o, entregava-o com as luvas, e abrindo aporta como quem acaba de correr numa bicicleta, poisava o seu olhar mediterrânico na minha mesa. “Cresceste, miúda, cresceste. Mas a tua cara é ainda a mesma…”.



Palavras-chave: Instrumentalina, memórias do coração, afectos, tio, Greta Garbo.