sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

Mel

Autor: Ian McEwan
Título: Mel
Género: Romance
Editora: Gradiva
1ª edição 2012
387 páginas


«Se ao menos eu tivesse encontrado, nesta
busca, uma pessoa declaradamente má»

Resumo:
O autor de Expiação revela neste romance a interferência da realidade na ficção, confundindo universos e diluindo fronteiras entre verdade e verosímil. Ian McEwan tece com grande fluidez de linguagem muitas considerações filosóficas, histórico-políticas, literárias que conferem não só densidade à escrita, nos vários níveis interpretativos, como dotam a obra de uma riqueza inegável de referências e intertextualidades. De forma paulatina, vamos sendo conduzidos, de artimanha em artimanha, de ilusão em ilusão, de engano em engano, por um edifício labiríntico e frágil cheio de expectativas, surpresas e desilusões. O jogo geo-político emoldura todo o enredo e mantém firme uma trama, equacionada nestes terrenos movediços de serviços secretos do MI5, na segunda metade do século XX. Este cenário explora as fraquezas humanas e amplifica as terríveis consequências das escolhas individuais - ora mais passionais, ora mais racionais - nas suas implicações colectivas. Concomitantemente, Mel consegue cumprir os requisitos de um thriller de espionagem e é uma verdadeira lição de História que materializa a crise social da década de 70, os radicalismos e extremismos políticos e religiosos, o terrorismo, evocando ainda a crise do petróleo e a instabilidade no Médio-Oriente. McEwan exibe especial mestria na hibridização da natureza do romance, que é fundamentalmente uma história de amor(es), e que como qualquer outro jogo de espionagem envolve variáveis chave como (des)confiança, (im)possibilidade, (des)respeito, ilusão, erotismo, (des)engano, traição, solidão e arrebatamento. Os papéis de cada interveniente vão-se invertendo, desfocando numa labilidade caleidoscópica que confunde e inebria até o leitor mais atento.  
Nas catacumbas do MI5, a protagonista Serena Frome é convidada a participar numa missão cujo nome de código é MEL e que visa atrair intelectuais de esquerda, não decididamente pró-soviéticos, aliciando-os no sentido de se tornarem mais alinhados com uma nova ordem. Serena, é obviamente bonita mas não necessariamente brilhante e o convite para integrar esta operação advém, desde logo, de um envolvimento privilegiado, intenso e fugaz, que manteve com um professor mais velho. Esta missão visa explorar “sweet tooth” de alguns agentes desafiando todos os limites até às últimas consequências. No entanto, Serena fica apenas incumbida de estudar a obra de Tom Haley e convencê-lo a ser um fiel depositário de uma Bolsa, instituída por uma Fundação, que garantirá o seu sustento e autonomia de escritor. A contrapartida da escrita revela-se, contudo, um presente envenenado, uma vez que Tom será vigiado e discretamente levado a redireccionar a sua ideologia política. Como seria facilmente expectável, a jovem agente apaixona-se pelo escritor e a história sofre constantes reviravoltas, subverte-se debaixo dos anseios inerentes e angústias éticas, nesta ambivalência de luz e sombra, mistério e revelação. 
A última voz no derradeiro capítulo é a de Tom, numa carta de despedida mordaz que deixa a Serena e em jeito de clímax, levanta múltiplas interrogações: será perdoável a sua traição? Sir Haley amá-la-á dessa forma tão incondicional atendendo a que relação foi desenvolvida em terrenos tão frágeis e escusos? O que era sincero e o que era fingimento? O romance distópico que Serena encontra sobre a mesa - depois de Tom ter sido aplaudido pela crítica: Telegraph, Times Literary Supplement, Listener, The Times - poderá agora ser um potencial vencedor do Prémio Austen? E quererá Serena que este seja publicado sob pena de exporem os mundos paralelos que construíram à sua volta? «Não há pressa em sermos publicados…Quando as coisas acalmarem, quando eu tiver desaparecido dos cabeçalhos, voltarei. Se a tua resposta for um não fatal, bem, não fiz nenhuma cópia disto, esta é a única e podes deitar-lhe fogo. Se ainda me amares e a tua resposta for sim, então será o início da nossa colaboração e esta carta, com a tua permissão, será o último capítulo de Mel. A decisão é tu, querida Serena.»

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«Os beijos dele começaram a tornar-se mais sérios e estávamos presentes a esquecer o sítio onde nos encontrávamos. Ele apertou-me o rosto entre as palmas das mãos e disse:
-Ouve, aconteça o que acontecer, tens de saber como gosto de estar contigo.
Fiquei preocupada. Aquele era o género de banalidade que um herói do cinema diz à namorada antes de ir morrer a qualquer sítio.
-Aconteça o que acontecer?-repeti.
Ele beijava-me, empurrando-me para trás contra as pedras desconfortáveis.
- O que quero dizer é que nunca hei-de mudar de opinião. Tu és muito, muito especial»

«Tive de experimentar o travo da tua solidão, de habitar a tua insegurança, a tua ânsia de louvor por parte dos teus superiores, a tua falta de sentimentos fraternais, os teus pequenos impulsos de snobismo, de ignorância e de vaidade, a tua consciência social diminuta, os teus momentos de pena de ti mesma, e a tua ortodoxia em relação à maioria dos assuntos. E fiz tudo isto sem ignorar a tua inteligência, beleza e ternura, o teu amor pelo sexo e por te divertires, o teu humor sarcástico e os teus doces instintos protectores. Vivendo dentro de ti, vi-me claramente: a minha cupidez material e a avidez de estatuto, a minha visão unilateral a raiar o autismo. E, depois, a minha vaidade ridícula – sexual, no vestuário, mas, acima de tudo, estética: porque outra razão te faria demorares-te interminavelmente nas minhas histórias, porque outra razão insistiria em pôr a itálico as minhas expressões predilectas? [...] Para te recriar na página tive de me transformar em ti e de te compreender (é isto que os romances exigem) e ao fazê-lo, o inevitável aconteceu. Quando me meti na tua pele, devia ter adivinhado todas as consequências. Ainda te amo. Não, não é isso. Amo-te mais ainda». 

quarta-feira, 30 de novembro de 2016

Golpe de Teatro

Autor: Helder Moura Pereira
Título: Golpe de Teatro
Género: Poesia
Editora: Asírio& Alvim
1ª edição 2016
67 páginas




To be loved
is half the way
I thought
Robert Creeley


Resumo: “Atenção à distância entre o cais e o comboio..”… é esta a imagem que se induz erronea e inadvertidamente no imaginário do leitor, como se de repente nos encontrássemos em trânsito numa qualquer estação ferroviária. No entanto, quando se afina a percepção, a poesia de Helder Moura Pereira inicia a viagem não a partir de um cais mas de um caos de 10 carruagens, na companhia de um narrador autodiegético e tendo como marca de água o minimalismo pós moderno. Se Em Cima do Acontecimento (1995), o autor abdicara de um ímpeto declarativo, nesta sua última obra vai reivindicar o direito à palavra e à sua consubstanciação nela. Este Golpe de Teatro, na ressonância do seu lugar epónimo francês ‘coup de théâtre’, adivinha peripécias e reflexões acerca de sinais do quotidiano, numa visão lúcida, ácida e sempre assertiva. Este Golpe, em compasso quaternário, apresenta a seguir aO INTERVALO ENTRE O CAOS E O COMBOIO duas outras partes até chegarmos à homónima da obra, qual efeito sinedoquiano.
               No primeiro poema [Vejo daqui a ponte que atravessa/o rio da expressão verdadeira/e comum do amor. No leito desse/rio amor e desejo coincidem] ecoam algumas notas Brechtianas - «do rio que tudo arrasta, diz-se que é violento mas ninguém chama violentas às margens que o comprimem» – nesse caudal da certeza que corre pressionado pelas margens da insinuação e da súplica. A ironia é explícita e por vezes até cínica, pejada de interrogações retóricas – "Querem ver que um belo dia eu morro e a estúpida da corda ainda vai continuar tesa?" -, de insinuações nesta luz indirecta que desfoca o ponto de partida e de chegada. 
                Já na segunda parte, com as sombras mais esbatidas, na lentidão dos gestos e no eco dos gritos inaudíveis, agudiza-se uma angústia e melancolia - "A vida parada, sem corda nenhuma, o longo caminho, a longa espera". Talvez por isso, os HOMENS OLHEM PARA O CÉU QUANDO PASSA UM AVIÃO, pois há sinais que precisam vir de cima para sermos surpreendidos cá em baixo tanto mais se assumirmos que qualquer vida daria um romance – “…Invadimos, sim,/ os ares, será culpa, será ainda/ espanto isto de olharmos/ para o céu quando passa um avião?”
As palavras ganham corpo e particular atenção, sejam elas gastas, desconhecidas, irritantes, antiquadas ou mortas num exercício de cisão entre o significante e o significado porque uma coisa é o som e outra o seu sentido: “Depois de tanta coisa a pessoa quase/ gagueja ao dizer a palavra ternura. É/ o que mais lhe falta. Quando diz sexo/sai-lhe uma palavra limpa e mesmo/ que em vez disso diga fazer amor,/fazer amor não tem aquele ar deslocado/e antiquado que tem noutras bocas./ Com a palavra ternura é que se embrulha um bocado, quando a diz parece/que a palavra não é uma palavra,/parece mesmo a ideia de ternura/a formar-se como matéria na sua boca”.  
E eis que na última página se “deu um golpe de teatro, a vida,/afinal, tinha outras coisas para mostrar/” e para serem compreendidas. O leitor sente-se assim desafiado a novas e reiteradas leituras para a decifração da ordem e para o deslindar de um caos que se converte (agora sim!) em cais de partida, num percurso de entendimento que fica sempre por cumprir: “Efusivo como num abraço/sincero, todo o corpo./Todo o corpo num abraço/sincero. Visto de fora é um abraço de dizer adeus?/Visto aqui de dentro/é mais do género olá/que bom estás de volta”.


O INTERVALO ENTRE O CAOS E O COMBOIO
[Vejo daqui a ponte que atravessa]
[Houve um milagre na terra desguarnecida]
[A perda do amor é sempre dano,]
[Esticámos e esticámos e esticámos]
[Torcido o nó da árvore, lâmina]
[De facto só faltava isto, atiras-me]
[Dias acinzentados, de cheiros e sabores]
[Deixaste de saber dançar, dançarino]
[Efusivo como num abraço]
[Não te dei ouvidos]

SOMBRAS ESBATIDAS NO CORAÇÃO DA CASA
[Ninguém se via –e a minha visão derrotada]
[O caminho era longo, como era]
[Abri mão de palavras desconhecidas]
[Ainda hoje não vi ninguém]
[Deixa-me da mão. Duro é o tempo]
[É preciso fixar a geometria da casa,]
[Faz uma grande diferença deixar]

OS HOMENS OLHAM PARA O CÉU QUANDO PASSA UM AVIÃO
[Eu era um homem sozinho, reuniam-se à volta]
[O objecto que estava a proteger a superfície]
[Escreveu, então, a olho nu. Uma folha]
[Levanto-me com força para o poema,]
[Quando converso com o meu dilecto amigo]
[Frente ao mar apetecia perguntar]
[Junto às águas do rio, quando eram]
[Acidentado, o caminho]
[A falta de jeito, pois era alguém pouco]
[Meu Deus, o que as pessoas guardam]
[Caem sobre a água todas as luzes,]
[Depois de tanta coisa a pessoa quase]
[Ou um grande silêncio ou]
[Acendia os cigarros uns nos outros]
[Abre a boca e fecha os olhos]

GOLPE DE TEATRO

[Já disseste de uma vez por todas]
[Foi excitante percebermos qual a cor]
[Sempre me irritou muito a palavra]
[Semente alada, borboleta de terra]
[Vou-me embora, disse eu no meio]
[Lembro-me bem desse dia, porque foi]
[Ferrugem no leme orientador]
[O marinheiro, após muito tempo]
[A meio da tarde e à noite, é mais]
[Os pés pesados arrastam-se, os pés]
[Chegamos ao fim do dia e cada um]
[Deu-se um golpe de teatro, a vida]


Vide Recensão feita por Ricardo MARQUES" [Recensão crítica a 'Golpe de Teatro', de Helder Moura Pereira]" / Ricardo Marques. In: Revista Colóquio/Letras. Recensões Críticas, n.º 193, Set. 2016, p. 211-213


terça-feira, 18 de outubro de 2016

A Beleza e a Tristeza

Autor: Yasunary Kawabata
Título: A Beleza e a Tristeza
Género: Romance
Editora: D. Quixote
1ª edição 2010
186 páginas




-Muitas mulheres são infelizes por isso consolam-se com ilusões.
-Não há nada de errado com elas?
-É fácil para uma mulher enganar-se. Consegue fazer uma mulher enganar-se, não consegue? (p.74)


Resumo: Oki Toshio é um escritor de meia-idade que fez uma viagem a Kyoto para ouvir os sinos dos templos na noite de Ano-Novo mas é motivado, sobretudo, pela nostalgia do passado e pelo desejo de reencontrar Otoko, que fora sua amante vinte e quatro anos antes e agora com quarenta é uma pintora de renome. Uma garota de dezesseis anos é a obra que imortaliza este amor, um sucesso de vendas, na qual Oki narra com requinte e preciosismo esta paixão com a então adolescente mesmo já estando casado com Fumiko, uma mulher que por sua vez nos inquieta pela tristeza, pela sujeição e consentimento de tudo. “Ao aproximar-se dos quarenta Otoko questionava-se se o facto de Oki permanecer dentro dela significava que aquele riacho de tempo estava estagnado e não fluía. Ou a imagem que tinha dele fluíra com ela ao longo do tempo, como uma flor à revia num rio? Como ela fluía ao longo do riacho de tempo dele, era algo que não sabia. Embora não a pudesse ter esquecido o tempo teria pelo menos fluído de maneira diferente para ele. Mesmo se duas pessoas eram amantes, os seus riachos de tempo nunca seriam iguais” (p. 14). Otoko nunca mais se envolvera com nenhum homem depois de Oki e vive agora com a sua aprendiz Keiko Sakami com quem mantém uma relação amorosa. Esta mulher é impetuosa e impiedosa, obstinada, dissimulada, amoral, perversa e em nome do amor que dedica a Otoko decide vingá-la seduzindo o filho de Oki, Taichiro, que se envolve nesta teia inesperadamente e que se torna talvez a maior vítima deste jogo. “Otoko perguntou-se se as mulheres seriam mais teimosas umas para as outras do que em relação aos homens e sentiu-se de novo atingida pela sua antiga sensação de culpa. Teria sido ela a ensinar a Keiko como infligir dor?” (p.106). Keiko é o móbil de toda a acção desviando o olhar de qualquer leitor que se queira focar no romance interrompido entre Otoko e Oki.
Y. Kawabata (1899-1972) constrói um universo enredado por esta personagem profundamente erótica, maliciosa, obsessiva, ciumenta e descreve este perfil perturbado e perturbador com uma serenidade desconcertante e limpidez de linguagem. A transparência com que se desvelam todos estes afectos distorcidos e pecaminosos, a manipulação entre as personagens e a crueldade que as envolve representam o mérito deste romance, que termina sob o olhar incrédulo de qualquer leitor. 
“A beleza e a tristeza” é por isso um título demasiado vago para abarcar a profundidade do erotismo, da maldade, da vingança, do ciúme, da perversão, da culpa, de tantos pensamentos e impulsos de suicídio e homicídio mas acima de tudo, é um título inexpressivo para denominar a insuperabilidade das perdas ao longo do romance.Talvez a beleza não seja assim tão etérea e talvez a tristeza usurpe um outro lugar, o da desistência e o da rendição: “Uma vez quando estavam a fazer amor, Otoko gemeu delirante e suplicou-lhe que parasse. Oki soltou-a e ela abriu os olhos. Tinha as pupilas dilatadas e a brilhar.-Mal te consigo ver Sonny-boy. O teu rosto parece desfocado, como se estivesse debaixo de um riacho. –Mesmo num momento daqueles, ela chamava-lhe «Sonny-boy» - Sabes se morresses eu não conseguia continuar viva. Não conseguiria! –Lágrimas brilharam nos cantos dos olhos de Otoko. Não eram lágrimas de tristeza mas de rendição» (p. 146)


Palavras-chave: vingança, traição, erotismo, obsessão, rendição

segunda-feira, 5 de setembro de 2016

Leão Velho

Autor: Lídia Jorge
Título: Leão Velho
Género: Conto
Editora: Dom Quixote
2004
47 páginas





«O problema da vida de um homem é que acima do instinto tem a honra. O dever de um bicho é seguir o seu instinto. O dever de um homem é contrariá-lo»
p. 25

Resumo: É sob a epígrafe de Carlos Fuentes - “são necessárias várias vidas para fazer uma só pessoa” - que Lídia Jorge nos oferece este conto, em jeito de fábula, numa mise en scène do imaginário colonial, com todas as ressonâncias imperialistas que daí decorrem. Em palco está o desejo de três homens de reviverem experiências outrora partilhadas em tempos idos: o director Santos Manuel, o colaborador Orlando Petit e o empregado do guichet, João Fortaleza. O mote é simples e o enredo linear: o abate de um animal velho em modo de safari africano. No entanto, o que se adivinhava ser um fim-de-semana calmo na propriedade do Alentejo de Santos Manuel, converte-se num déjà vu dos tempos em Moçambique ou não fosse o próprio leão proveniente da província de Sofala. Tudo foi então concebido, pormenorizadamente, discutido e ajuizado, desde as técnicas, aos meios, à estratégia, passando pelo lugar, tempo e espaço, em prol de um desejo sem preço, pois é sempre esse o valor de uma vontade.
Este desafio desejava-se, falaciosamente, simétrico e justo e por isso foram até valorizadas questões éticas, vejamos: «se ao contrário do que estava previsto, o bicho não oferecesse luta? Se o bicho não se levantasse do amalho, não se movesse ou caminhasse tão manco que nem desse para uma pessoa levantar a arma e atirar? Nesse caso o que faria? – perguntou o anfitrião. Por certo que não iria abater um animal à falsa fé, não iria alvejar um bicho moribundo, fingindo que estabelecia um combate. Não, não iria, nesse caso passaria a arma a um dos seus companheiros e um deles que o abatesse, se quisesse. (p.28). Neste vis-à-vis entre o instinto e a honra era necessária uma certa dose de lealdade, alinhada a um pseudo comportamento correctivo. Contudo, o que seria o expectável ser o lado (pre)dominante deu lugar a uma lógica invertida. 
                Lídia Jorge convoca neste conto uma herança histórico-social familiar e comum a todos nós e com uma ironia fina, divertida e subliminar caracteriza as “nossas” identidades, que mais não são do que a sobreposição de camadas na memória. Pergunte-se, então, o leitor pelo desfecho pedagógico deste conto enfabulado e aqui se deixa a resposta: «Uma vergonha. Éramos quatro, da mesma idade. Mas só um de nós se portou bem. E foi ele…ele, o bicho».

Palavras-chave: honra, instinto, memória, imaginário colonial.  


quarta-feira, 10 de agosto de 2016

O remorso de Baltazar Serapião

Autor: Valter Hugo Mãe
Título: O remorso de Baltazar Serapião
Género: Romance
Editora: Porto Editora
1ª edição 2015
278 páginas





«dizia o meu pai, a voz das mulheres só sabe ignorâncias e erros, cada coisa de que se lembrem nem vale a pena que a digam. mais completas estariam, de verdade, se deus as trouxesse ao mundo mudas. só para entenderem o que fazer na preparação da comida e debaixo de um homem e nada mais.»
(p.271)


Resumo: Mesmo com o alerta de tsunami de José Saramago no prefácio da obra, o leitor nunca terá o espírito preparado para conhecer esta realidade que Baltazar Serapião lhe apresenta nem estará de sobreaviso para o incómodo que irá sentir da primeira à última página. Encontramo-nos em tempo de El-rei D. Dinis, em plena Idade Média, um cenário que assombra e se projecta em pleno século XXI. A marca de água deste romance é uma memória colectiva portuguesa, uma herança de estereótipos e preconceitos, descrita de forma bruta, desarmante e boçal tanto mais se lhe reconhecermos mais do que verosimilhança, verdade. A citação em epígrafe de Jorge Melícias - “há a boca pisada de pedras e o remorso e uma parede mordida pelo eco” - fortemente sinestésica, adivinha, desde logo, este lado mais violento, impulsivo e irracional do Homem. 
O protagonista é proveniente da família Sarga, alcunha que advém da vaca, figura igualmente central e omnipresente em toda a estória e que carrega um simbolismo disfórico e pejorativo. Serapião é filho da sociedade senhorial da época, como todos os outros, e faz por isso juz aos arquétipos ancestrais enraizados na história social de qualquer povo. Brunilde é sua irmã, serve em casa de senhores que abusam dela sexualmente e uma vez grávida de Dom Afonso (marido de D. catarina) acaba por morrer maldita e amaldiçoada por todos, para grande vergonha da família. O problema nunca está na causa tacitamente consentida e legitimada pela força do (mau) hábito masculino mas na consequência da fraqueza feminina, na culpa imputada a quem nunca teve voz activa. O léxico arcaico e folclórico constrói imagens brutalmente cruas, retratos em carne viva de vícios grotescos e de pulsões animalescas. É sabido que sejam elas esposas, filhas, irmãs ou mães, a procriação converte-se no fim último de qualquer mulher, que se resume a um estatuto de fêmea, desejando-se silenciosa e submissa, anuindo incondicionalmente às violências que sobre elas são exercidas, «e se lhe dei o primeiro correctivo de mão na cara não foi porque não a amasse, e disse-lho, existe amor entre nós, assim te aceitei por decisão de meu pai que quer o melhor para mim, mas deus quis que eu fosse este homem e tu a minha mulher, como tal está nas minhas mãos completar tudo o que no teu feitio está incompleto, e deverás respeitar-me para que sejas respeitada. Nada do que te disser deve ser posto em causa, a menos que enlouqueças e me autorizes a pôr-te fim. (.p.69).
Mesmo ciente de que «o amor é uma maldade dos homens porque junta as mulheres aos homens numa direcção que só a eles compete» (p. 223) Serapião apaixonou-se por ermesinda, a mais bela das mulheres da aldeia: «senti uma felicidade absoluta, uma felicidade infinita como se possível fosse que, ali no meio de nada e deitados para a solidão estivéssemos no paraíso. Senti uma felicidade assim, como se, mais ainda, fosse possível não querer ver os defeitos de uma mulher e amá-la e conservá-la para além do que deus queria.»p.269. No entanto, também este amor foi subjugado, violentado, pervertido, devassado e difamado…um espaço incomensurável que deu lugar a um remorso inominável…«ajoeilhei-me a seus pés e confessei que a amaria até ao fim da vida. Sim, poderia sentir remorso pela competência tão apurada usada na educação da minha mulher. Por essa sensatez de não deixar que se perdesse sem retorno. Poderia sentir remorso por essa bondade de, a cada momento, a ir buscar à razão, a fazer ver as coisas mais correctas da criação, para ajudar a encontrar o seu lugar mais humano. Poderia sentir remorso naquele instante, perante a minha ermesinda tão diferente, que muito mais descansada estaria do corpo se eu me houvesse desleixado nos bons trabalhos de ser seu marido. (p.271). O maior de todos os remorsos de Baltazar Serapião acabaria, inevitavelmente, por vir nas últimas páginas do romance quando todos se «afastaram da minha ermesinda que, imóvel, respirou menos, respirou menos, respirou menos, não respirou. A sarga mugiu de modo lancinante» (p.278)


Palavras-chave: machismo, violência, submissão, jugo, silêncio

domingo, 3 de julho de 2016

Um Homem: Klaus Klump

Autor: Gonçalo M. Tavares
Título: Um Homem: Klaus Klump
Género: Romance articulado na tetralogia O Reino (conjuntamente com A Máquina de Joseph Walser, Jerusalém e Aprender a rezar na Era da Técnica)
Editora: Editorial Caminho – grupo Leya
6a edição 2015
132 páginas




«Johanna olha pela janela. Klaus, o amante, ainda não chegou. Enquanto o amante não chega a mulher não sai da janela. As janelas existem porque os amantes existem, e porque os amantes ainda não estão em casa. As janelas deixam de existir quando as pessoas que amas voltam».

Resumo: Se lemos Um Homem: Klaus Klump da série O Reino na expectativa de reconhecer a mesma dinâmica da série O Bairro, rapidamente nos surpreendemos por não encontrar o mesmo carácter lúdico, irónico e descomprometido da “vizinhança”. Este romance, que se articula com A Máquina de Joseph Walser, Jerusalém e Aprender a rezar na Era da Técnica, apresenta uma escrita matemática, objectiva, numa estrutura sintáctica mínima, a que Gonçalo M. Tavares já nos habituou. No entanto, esta aparente simplicidade e nudez linguísticas oferecem uma profundidade filosófica, repleta de aforismos, compondo uma narrativa fragmentada e interrompida, que imprime um ritmo discursivo muito sui generis.
Catharina era a mãe louca de Johanna, que era namorada de Klaus, um editor pacato, que se deitou com Herthe, irmã de Clarko. Herthe, por sua vez, casara com Ortho, um oficial bonito e inteligente e em segundas núpcias com Leo Vast, um homem rico, dono de cinco indústrias da região, tinha ela 31 e ele 53. Este núcleo de personagens convida à análise da animalidade do Homem e da desumanização dos afectos, ao escrutínio dos instintos mais impulsivos de sobrevivência, promovidos por um cenário caótico de guerra. Até que ponto a guerra mutila os traços de humanidade? «Pertence a várias coisas-homem que se juntam. E daí que a fornicação seja tão atractiva e assustadora: é a junção de dois mundos: do mundo do ruído e do mundo da palavra, do mundo do Homem e do mundo animal, da natureza incompreensível e bruta e ainda do Homem que tenta compreender […] Klaus, no entanto, sempre tinha pensado que é mais fácil simular a parte humana de um som – a parte verbal – que a parte animal de um som – esses tais barulhos disformes. No amor – havia percebido Klaus – ou mais propriamente, na fornicação, existia com evidência um som com dois rostos – um rosto animal e outro humano; e o único rosto verdadeiro era o animalesco». E afinal, em tempo de guerra, qual é a fronteira entre o humano e o  mecânico? Qual é o limite entre o homem e os deuses? Assumir que não se é Deus talvez seja o acto mais corajoso e o único gesto genuinamente divino. Nem o barulho das balas, nem o das granadas tem vestígios verbais, não podem por isso ser humanos, nem tão pouco naturais ou orgânicos: «Porque o som da bala não é som dos homens, disso Klaus tinha a certeza. Porque um homem não consegue repetir duas vezes o mesmo som inteligente ou a mesma frase, enquanto aqueles sons eram coisas repetidas mecanicamente, repetições exactas. O que mais assustava Klaus era esse modo infalível de cópia. O facto de uma arma conseguir nas mesmas condições, repetir exactamente o mesmo som com duas balas diferentes». 
Na desordem imposta pela guerra tudo se confunde, a velocidade média da bondade e a velocidade média da força, tudo tem ritmo automático e cadências abruptas mas mesmo no cenário mais turbulento e caótico o Homem Klaus Klump lembra que só se extinguem as emoções quando a última célula de um sistema orgânico deixa de viver. Essa capacidade dos afectos é a única regeneradora da natureza humana e que explica, consequentemente, os muros edificados entre o passado e o presente: «Há um muro altíssimo: ninguém percebe o que sucedeu. Como se constrói um muro no tempo? Como se tapa na cabeça das pessoas aquilo que aconteceu?». Mas o leitor encontra a resposta pela analogia inicial à sebe que separava os jardins de Johanna e Klaus: «Se eu não fosse tão alto a sebe seria mais baixa. Klaus acreditava mais no destino do que Johana. Porém nunca há duas mudanças no mundo para um único efeito. Se Klaus fosse mais baixo, isso constituiria uma mudança no mundo. Se a sebe fosse também mais baixa, seriam duas mudanças no mundo. Se existissem dois factos diferentes no passado, então não poderia ter sucedido o mesmo. O destino tem uma lógica própria. São necessários cálculos complexos para perceber o que poderia ter acontecido em vez do que realmente aconteceu. Há demasiadas possibilidades para que aconteça sempre o mesmo. O mundo tem variedade e é longo.» E já agora...pois que seja também pleno de humanismo.


Palavras-chave: guerra, mecanização, desumanização, sobrevivência

segunda-feira, 20 de junho de 2016

A Moral Anarquista

Autor: Piotr Alexeevinch Kropotkine
Tradução, notas e prefácio: José Luís de Sousa Pérez
Título: A Moral Anarquista
Género: Ensaio político
Editora: Edições Sílabo
Lisboa, 2006
134 páginas






Resumo: O cognome de Príncipe Anarquista dado a Piotr Alexeevich Kropotkine (1842-1921) representa um percurso de vida invulgar, repleto de acções políticas e intervenções sociais polémicas, escolhas fracturantes e dissidentes de um descendente da alta aristocracia russa, que nunca calou a sua insatisfação e inconformismo[1]A Moral Anarquista apresenta as principais coordenadas de um itinerário ideológico-político, internamente diverso e complexo, nas escolas emergentes no seio da doutrina anarquista (individualismo, colectivismo, mutualismo...). Apesar disso, o elemento unificador e primordial deste programa assenta na organização de uma sociedade sem mediação de uma autoridade coerciva, nomeadamente a do Estado. Kropotkine afigura-se como expoente principal do anarquismo comunista ou anarco-comunismo, que privilegiava as necessidades de cada um frente a outras correntes doutrinárias que eram preferencialmente defensoras da distribuição dos bens de forma proporcional ao tempo de trabalho do indivíduo. O anarquista russo defendia também que as necessidades deveriam ser determinadas por associações voluntárias de trabalhadores, no que diz respeito à produção, e em comunas locais no que se refere ao consumo. Impera, inevitavelmente, uma questão que não se satisfaz inteiramente (ou pelo menos explicitamente) em nenhuma das reflexões ao longo dos ensaios: qual é o modelo económico que viabiliza a instituição e a preservação dos valores de justiça e de equidade nas relações inter-pessoais na sociedade? A corrente kropotkiana desnuda, no entanto, alguns problemas nevrálgicos associados a esta questão soberana. O optimismo impetuoso em relação natureza humana, esbatido pelas outras escolas anarquistas ou até na doutrina marxista-leninista, é para Kropotkine um ponto de partida seguro e irrevogável.
No primeiro capítulo em que se questiona a moral enquanto momento de crise social, o pensador russo indaga por que razão deve a moral ser obrigatória ou imposta, levantando o véu para o capítulo seguinte, sobre a procura do prazer próprio, em que considera a moral algo muito mais intrínseco à natureza humana do que uma construção político, religiosa ou até social. Neste ponto, há que considerar que os actos dos homens são sempre o resultado de uma luta interior entre dois elementos hostis e de dialécticas insanáveis. O Homem é por isso tão ou mais virtuoso quando deixa vencer na alma a consciência em detrimento da carne e das paixões. Por muito diferentes que sejam as duas acções, no que se refere ao resultado para a humanidade, a verdade é que o móbil sempre foi a procura de prazer. Perguntamo-nos então neste momento, onde reside nesta ilação o optimismo pela natureza humana aparentemente sequiosa de prazer próprio e hedonista. Se assumirmos que procurar o prazer é o mesmo que evitar uma dor, agir em prol e benefício do outro pode trazer satisfação quando se evita o sofrimento dos outros.
No capítulo seguinte, sobre o Bem e o Mal, desconstrói-se este par agónico tantas vezes associado à ideia de punição, castigo ou recompensa, uma herança religiosa e até mitológica. Estes dois conceitos podem assumir-se como produtos naturais e Kropotkine acredita que não é uma distinção estritamente humana, podendo ser alargada em toda a biodiversidade, a peixes, insectos, aves ou mamíferos, e exemplifica evocando Auguste Henri Forel (1848-1931), um observador de formigas. Este médico demonstrou e confirmou nas suas várias experiências que uma formiga que se enfartou de mel ao encontrar outra de ventre vazio tem o dever de vomitar o mel para que as outras se possam satisfazer. Caso a formiga não proceda desta forma, é mal tratada como se de um inimigo da própria espécie se tratasse. Exemplos como este multiplicam-se - pardais, as marmotas, entre tantos outros - e desde animais considerados inferiores até aos mais desenvolvidos. 
Em suma, a moral pode resumir-se do seguinte modo, «faz aos outros aquilo que quererias que te fizessem a ti nas mesmas circunstâncias». Daqui nasce o princípio da solidariedade, desenvolvido no capítulo seguinte, o bom é aquilo que é útil para a sociedade e o mau aquilo que lhe é nocivo. É certo, que na biodiversidade a águia devora o pardal, o lobo devora as marmotas mas as águias e os lobos ajudam-se entre si para caçar e os pardais e as marmotas solidarizam-se também contra os animais predadores. No mundo animal e humano, a lei do apoio mútuo constitui a base do progresso e, tal como a coragem e a iniciativa individual que dele resultam, assegura a vitória e a sobrevivência da espécie. A competição entre espécies não invalida por isso a cooperação entre semelhantes, concluindo-se que os costumes e os instintos são os reguladores da acção em sociedade sem que para isso seja necessário recorrer a qualquer tipo de leis ou governo. Encaminhando-nos para o sexto capítulo, percebemos que a anarquia não conflitua com a moralidade, nem tão pouco implica a sua extinção.
O príncipe anarquista ensaia neste seu tratado uma tentativa de recondução da evolução humana, ciente de que a liberdade e o poder de agir são simultâneos ao dever agir. O trabalho finaliza com um capítulo sobre a distinção entre altruísmo e egoísmo, e citando Herbert Spencer (1820-1903), reitera que o bem do indivíduo se confunde com o bem da espécie e se os dois não coincidissem a própria evolução do reino animal nunca poderia ter acontecido. O desígnio de cada indivíduo é viver uma vida intensa e plena, e a intensidade é proporcional à sociabilidade, na mais perfeita identificação de si com todos aqueles que o rodeiam.




[1] Filho do general do exército imperial russo, descendia de uma das famílias mais antigas da nobreza russa, da ancestral casa real dos Rurik. Desde tenra idade, ainda ele frequentava o Corpo de Pajens, instituição militar privilegiada da Rússia Imperial, Kropotkine detinha já a fama de rebelde. Apesar da carreira militar não corresponder às suas aspirações, considerava este um percurso favorável para quem pretendia instituir a alteração de leis e medidas que produzissem o melhoramento da vida das classes sociais mais pobres. Para este efeito, escolheu um trabalho administrativo no regimento cossaco, na Sibéria, experiência que em muito contribuiu para o seu amadurecimento ideológico e evolução social, devido ao facto de ter sido assistente pessoal do general Koukel. Este general siberiano não só favoreceu o acesso de Kropotkine a obras de Mikhail Bakinine, Alexander Herzen como se aproximava também do ideal reformador liberal, que poderia vir a introduzir alterações radicais na administração russa, como desejava o jovem Kropotkine.
Entre 1868-1870, Kropotkine dedica-se aos seus estudos e observações realizando viagens pela Finlândia, Suécia e em 1872, na Suíça, filia-se na Associação Internacional dos Trabalhadores, que visava a união de diversos grupos políticos de esquerda e sindicatos com vista à adopção de medidas que melhorassem as condições da classe trabalhadora. No entanto, este ideal socialista ainda não satisfazia as suas aspirações e, em seguida, entrou em contacto com a Federação Jura, a mais importante e anti-autoritária secção anarquista.
De regresso à sua terra natal e munido de uma bagagem ideológica considerável inicia agora uma intensa actividade de difusão de propaganda anarquista através do Círculo de Tchaikovsky, uma sociedade literária de auto-educação dos revolucionários russos formada por jovens burgueses e da aristocracia procurando inculcar nos espíritos desinformados os ideais de revolta e de liberdade contra a opressão czarista.
Em 1877, Kropotkine desloca-se a Paris para participar activamente no despontar do movimento socialista francês, fundando juntamente com Paul Brosse o jornal internacional L’Avant garde e participando, nesse mesmo ano, no congresso de tendência bakineana em Verviers, tendo regressado à Suiça em 1878. No ano seguinte, editou para a Federação Jura o jornal Le Révolté e em 1887 o jornal muda de nome para La révolte e finalmente para Les temps nouveaux (1895).
Em 1881, Ktopotkine assiste em Inglaterra ao Congresso Internacional Anarquista e apelou ao empenho de actividades orientadas para a deposição do poder vigente, defendendo a necessidade do assassinato do czar russo Alexandre II, o que viria a acontecer efectivamente pouco tempo depois. Em virtude do assassinato do czar russo, Kropotkine virá a ser expulso pelo governo suíço devido às suas declarações pró-violência contra a realeza russa. Na verdade, o Principe Anarquista acreditava que uma revolta do povo oprimido era mais eficaz do que um voto. Continuou a sua demanda por Inglaterra, França, onde foi novamente detido juntamente com cinquenta e nove anarquistas, devido ao atentado ocorrido na Praça Bellecour, em Lyon, actividade na qual não tinha sequer participado. Ficou detido e nesse tempo dedicou-se a ensinar cosmografia, geometria, física, línguas aos companheiros, reiterando a necessidade da difusão do conhecimento enquanto etapa e instrumento fundamentais para o processo revolucionário das massas.
A 18 de Janeiro de 1886, deu-se a libertação do anarquista russo, graças à pressão de figuras conhecidas do panorama social, político e intelectual francês e inglês. Inglaterra seria o seu próximo destino e aí terá permanecido com a sua esposa Sophie Ananief durante trinta anos. Na década de 1890, as actividades de Kropotkine centram-se na escrita e além da actividade literária viaja para o Canadá e para os Estados Unidos, em 1897, leccionando e dando palestras sobre as eras glaciares como forma de assistir a congressos anarquistas nesses mesmos países. Entre 1909 e 1914 regressa à Suíça abstendo-se de participar em qualquer actividade anarquista.
Após a Revolução de Fevereiro, primeira etapa da Revolução Russa de 1917, cujo resultado imediato foi a deposição do Czar Nicolau II, Kropotkine é calorosamente acolhido no seu país de origem, sendo-lhe inclusivamente oferecido o cargo de Ministro da Educação no governo provisório, pasta que rejeitou sem hesitação. A promessa de erradicação de todo o tipo de autoridade política opressiva converteu-se numa outra, no fundo igual, a centralização despótica do poder. 

domingo, 29 de maio de 2016

O Regresso de Penélope

Autor: António Vieira
Título: O regresso de Penélope
Género: Romance
Editora: Edições Colibri
Lisboa, 2000
151 páginas



«Como era fácil ligar-se, terrível desligar-se; 
fácil perder-se e difícil encontrar-se…»

«Belo e sinistro me parece o mundo conforme a posição que oferece ao nosso olhar: volve de luz em sombra e sombra em luz. Mas se lutamos é porque ainda o queremos transformar e a nós nele”


Resumo: António Vieira desafia o leitor a descobrir e a actualizar as matrizes clássicas, ao longo de doze capítulos (ou serão cantos?), evocando inúmeras intertextualidades épicas à contraluz da Odisseia de Homero. Este romance ensaístico narra uma viagem, em pleno século XXI, da heroína grega, Penélope. Esta jornalista juntamente com a colega de profissão, a nórdica Inger, fazia a cobertura de uma sublevação em Singapura, quando foram ambas surpreendidas pela informação da CNN, anunciando o furacão Helena. Juntam-se a elas a indiana Kemala e a japonesa Yasuko, que se insurgiam também contra o poder político vigente, duas filipinas, Raïssa e Sarani, e ainda uma malaia, Dewi, que fugiam por sua vez à violência do Islão e à condição de escravas. 
O périplo destas seis argonautas, no veleiro Bunga Manis (Flor Doce), é fértil em aventuras, expedientes e agruras. Mutatis mutandis, Penélope vai (re)conhecer os episódios outrora percorridos por Ulisses, (Cilesso, digo!) que se encontra agora em Catai, cerzindo as suas teias informáticas. Verdade seja dita, «Cilesso fora por muito tempo o magneto que movera nela a agulha da vontade na bússola da Sorte por que gizara a rota. Guiavam-na então o amor, a ternura, a amizade por um homem bem próximo de afecto mas distante, que escapara incólume de uma calamidade e que a esperava» ( p.144). «Ambos tinham decidido um dia escrever conjuntamente um livro e habitar o mesmo espaço literário – o que significava misturarem a percepção do mundo e deles próprios com o horizonte do desejo e a utopia até ao seu extremo e conjectural limite: trabalho que, sabiam-no, só podia provir do apogeu do amor…e eis que, num momento decisivo, estavam separados em pontos opostos da Terra, senão do próprio Ser, repartidos talvez entre o reino da vida e dos mortos» (p.39). No entanto, este ideal conjunto esteve sempre comprometido e vaticinado porque Penélope nunca poderia imaginar que uma viagem fosse afinal uma «vida interior à própria vida» na qual estamos todos condenados à incomunicabilidade e ao isolamento dos nossos desejos, únicos, irrenunciáveis, pessoais e intransmissíveis.
Identificamos muitas ressonâncias homéricas neste Regresso de Penélope, anunciadas desde logo pelo avesso do próprio título ou pelos muitos episódios como o ataque dos Lestrígones, dos piratas “Ciclopes” - dos quais apenas se libertaram graças aos expedientes da líder - passando pelas feitiçarias de Erick na ilha flutuante e luxuriante de Yggoia (qual sedução de Circe), ou ainda o canto das sereias a que Penélope resiste amarrada ao mastro. Na ilha de Yggoia, Yasuko foi a única que não se entregou ao jogo como confirma Penélope: “Yasuko, querida amiga: permanecer assim fora da História, protegidas do jugo dos estados, das normas da cultura, de trabalhos e deveres, é um doce interregno que nos restitui à natureza. Devias ter experimentado também tu, fruído da doçura de jogar e confiar-te ao Jogo…tu que não confias nos jogos reais, como os de Kemala, nem nos jogos de astúcia, como os das nossas companheiras filipinas; nem te confias nunca ao jogo grave e perigoso do amor, a que me tenho dado, doce e violento mais que tudo o que jogar se possa…Tu, tão bela!» Apesar disso, esta obra é muito mais do que um desfio à leitura épica na retrospectiva de Homero, é um comprometimento com o nosso tempo, nesta análise crítica e nostálgica, à distância do mundo edénico da Grécia antiga. Estas heroínas representam várias culturas nas suas diversas circunstâncias em torno de um único anseio: a conquista da liberdade. Por esse facto, a denúncia da violência, da barbárie da civilização machista e opressora, a distância e os avatares desta civilização tecnológica, são o móbil e o interesse soberano nesta obra. Como afirma Kemala: «- Corremos entre dois riscos: a falta de lei, que cria a lei da selva; e a lei implacável da sharia, que nos faria escravas. Os excessos do desvio, como os rigores da norma, enchem de ciladas o século emergente» (p.29).
Já no final da viagem, chegando à costa da Austrália, Penélope abriu a caixa madrepérola de “Pandora” e entornou para o mar a semente letal, negra e brilhante, dádiva de Yasuko e que mais não era do que o símbolo da escravidão e da tortura de que os deuses a tinham poupado. Assim se amenizaram os contrastes abruptos entre a aflição e a esperança, entre a angústia sem consolo e o nirvana, na hibridização de todos fenómenos e acontecimentos: pois haverá regresso mais auspicioso do que este?

Palavras-chave: Penélope, viagem, odisseia do avesso, liberdade, igualdade, mulheres


segunda-feira, 11 de abril de 2016

História dos Mongóis aos quais chamamos Tártaros

Autor: Giovanni da Pian del Carpini
Título: História dos Mongóis aos quais chamamos Tártaros (Ystoria Mongolorum quos nos Tartarus Appellamus)
Tradução do Latim: André Simões e Gustavo Infante
Género: Crónicas de viagens
Editora: Livros de Bordo
2015
136 páginas




«Devem pois as tropas ter cuidado com isto: não corram muito tempo atrás deles por causa das emboscadas que costumam preparar. É que lutam mais com engano do que com valentia»
História dos Mongóis aos quais chamamos Tártaros: 93.

Resumo: O italiano da Ordem Franciscana Giovanni da Pian del Carpini (1180-1252) foi um dos primeiros europeus a viajar até ao Oriente, vinte anos antes do mercador veneziano Marco Polo. Este seu Diário de Bordo é um olhar lúcido e atento sobre a vida e os costumes dos mongóis a quem chamamos tártaros: esse povo distante e desconhecido, que tantas investidas bélicas empreendeu pela Europa em tempos medievos. As investidas deste povo, motivadas pelas suas ambições expansionistas, deixam marcas indeléveis de destruição por Kiev, pela Polónia, pela Alemanha, Hungria, Bulgária bem como por todas as terras do Mar Adriático. O centro da Europa estava assim na mira da ameaça mongol mas, surpreendentemente e de forma repentina, os tártaros bateram em retirada, em 1242, regressando à sua terra por circunstância da morte do imperador Ogodei Khan, filho do grande Gengis Khan. Perante este acontecimento, impunha-se a presença dos chefes mongóis em Karakorum, a antiga capital mongol, para a eleição do novo imperador. No entanto, em 1243, com a nomeação do papa Inocêncio IV, mantinha-se latente o receio de um potencial ataque mongol à Europa, razão pela qual foi enviada uma comitiva, a cargo do frei Giovanni, a essas terras remotas, na ânsia de uma possível conversão à fé católica do então imperador eleito. 
História dos Mongóis apresenta ao longo de nove capítulos, com detalhe e requinte descritivos, o modus vivendi e o modus operandi deste povo. Ainda que toda e qualquer descrição nunca esteja desprovida de parcialidade pois é desde logo uma leitura e interpretação do outro, em momento algum, o leitor se depara com juízos de valor flagrantes ou comentários comparativos. Por vezes até nos surpreendemo com o reconhecimento de alguns rasgos de humanismo e com o elogio de um povo guerreiro, que se rege por uma moral própria, na obediência de um código de conduta bem estabelecido e implacável.
A metodologia destas crónicas de viagens é rigorosa: inicia-se com um breve prólogo, seguindo-se a descrição da terra dos tártaros (localização e natureza), das pessoas, roupas e costumes de ordem social, religiosa (onde se desenvolvem descrições dos rituais fúnebres e de definição do pecado): «Diga-se que, para eles, porém, matar alguém invadir as terras de outrem, adquirir coisas alheias de modo injusto, fornicar, injuriar outros ou ir contra as proibições e os preceitos de Deus não é pecado», p.28).
Depois da caracterização destas idiossincrasias dos hábitos e costumes sociais, explica-se a história ab initio da constituição de poderes do imperador e dos príncipes, de toda a organização e astúcia bélicas e da perfídia para com aqueles que se lhes rendiam e ainda das suas acções mais tirânicas. Paradoxalmente, este povo predisposto para a guerra procura a paz e, nos últimos três capítulos, descreve-se o modo de organização militar das tropas, da fortificação, fundação e reunificação das cidades, na senda do alargamento do império mongol. Além de todo o pragmatismo que lhes é apanágio, estes tártaros pautam-se por uma religiosidade própria: «nada sabem da vida eterna ou do sofrimento perpétuo. Crêem, porém que, depois da morte, viverão noutro século e que os seus rebanhos se multiplicarão; que comerão e beberão e farão tudo aquilo que neste século fazem enquanto estão vivos» (p.29.). Contudo, isso não invalida que se dediquem convictamente à arte da adivinhação, dos presságios, feitiços, encantamentos, interpretações pois qualquer povo tem sempre uma necessidade de legitimação da sua violência por uma entidade maior e por um valor mais alto. Curiosamente, todas as guerras são contra os “outros” e não entre eles: «raramente ou nunca discutem com palavras, nunca chegam a vias de facto. Guerras, rixas, ferimentos, homicídios nunca ocorrem entre eles. Nem salteadores e ladrões de coisas grandes se acham entre eles», (p.35).
Cada capítulo abre de forma sistemática e paralelística com a apresentação prévia dos assuntos que irão ser desenvolvidos. Se acaso nos perguntamos se uma tradução latina desta natureza, feita a quatro mãos, poderá ou não incorrer em falta de coerência pela eventual variação estilística, que se ateste o sucesso da empresa, digno de reconhecimento. 


Palavras-chave: Mongóis, Tártaros, povo bélico, investidas expansionistas, tradições.