Autor: Valter Hugo Mãe
Título: A máquina de fazer espanhóis
Género: Romance
Editora:
Alfaguara
Objectiva
5ª
edição 2010
287
páginas
“há incómodos necessários para
percebermos os limites dos nossos domínios”
“a morte era afinal a mais organizada
das instituições, cheia de afazeres e detalhes, mas muito competente e
certeira”.
Resumo: O leitor quando abre as primeiras
páginas, na ânsia de corresponder o título às suas eventuais expectativas, surpreende-se
com o cenário que lhe é colocado diante dos olhos: encontramo-nos no hospital
onde António Silva, de 84 anos, se depara com a morte da mulher, Laura. E na verdade, «com
a morte também o amor devia acabar. Acto contínuo, o nosso coração devia
esvaziar-se de qualquer sentimento que até ali nutrira pela pessoa que deixou
de existir. […] com a morte tudo o que respeita a quem morreu devia ser
erradicado, para que aos vivos o fardo não se torne desumano. Esse é o limite,
a desumanidade de se perder quem não se pode perder».
Passados poucos dias o senhor
Silva vai para o Lar Feliz Idade,
juntar-se a outros 92 residentes e, apesar de alguma resistência inicial, aos
poucos vai-se entregando às circunstâncias, reaprendendo, com muita dificuldade, a viver depois de
cinquenta anos ao lado de quem mais amou. Quando a morte subtrai à vida
fica-se ali naquele compasso de espera e num estado transitório, de quem
pressente o tempo diante dos olhos a acabar-se a cada dia e a cada instante. Perante os desabafos inconformados do Senhor Silva pela morte da esposa, o senhor Américo revelou-se, desde logo, uma
companhia permanente e assertiva: “o américo esperou uns segundos por que me
acalmasse. Procurou um silêncio limpo como uma folha muito limpa onde pudesse
escrever uma frase mais digna e disse: um dia essa saudade vai ser benigna. A
lembrança da sua esposa vai trazer-lhe um sorriso aos lábios porque é isso que
a saudade faz, constrói uma memória que já não dói e que lhe traz apenas
felicidade. A felicidade de ter partilhado consigo um amor incrível que não
pode mais fazê-lo sofrer, apenas levá-lo à glória de o ter vivido e de o ter
merecido”.
Ainda assim, nesta Feliz Idade há tempo suficiente para
divagações várias, seja sobre futebol, seja sobre política, economia ou religião
que dão azo a conversas pouco consensuais e quase sempre controversas como no
caso da afirmação de Anísio Franco sobre Deus - “há milagres suficientes no
mundo para pensarmos que deus nos observa mas é difícil a pequenez do homem
ver a grandeza de um evento assim, é como se tivéssemos os olhos pequenos de
mais para verem uma coisa tão grande”. Mas certo é que duvidando-se ou não
desta existência, “esperamos que exista no universo uma entidade maior,
tentacular e poderosa, que venha obviar estas situações e nos desculpe o não
envolvimento ou o nenhum compromisso porque somos pequenos, apenas um grão de
areia no cosmos infinito e desmobilizamos sem forças físicas nem mentais”. Aqui reavivam-se
e revivem-se as memórias de uma ditadura que não foi mais do que uma
exterminável máquina de roubar a metafísica do homem, convertendo-o num cidadão
não praticante, numa cidadania de abstenção: “tudo para que não praticássemos
cidadania nenhuma e nos portássemos apenas como engrenagem de uma máquina a
passar por cima dos nossos ombros, complexa e grande de mais para lhe
percebermos o início, o fim e o fito de cultivar a soberba de um só homem”. A
propósito da liberdade, com a presença do espanhol Enrique de Badajoz, que
assegurava ser esta sua cidade mais portuguesa do que espanhola, discutia-se a
independência e a viabilidade deste país fora da alçada de Espanha, sem tempo para rasgos de patriotismo.
Com as visitas da sua filha Elisa, o
senhor Silva dava-se conta de que a cada novo luto - porque de um lar de
idosos não se pode esperar que esse estado não seja de permanência - a morte
vinha de todos os lados, leva-nos tudo, mesmo aquilo a que nos agarramos para
lhe fugir. O tempo não é linear mas muito menos a morte é unidireccional, é
como se fosse um cerco em circuito fechado, muito certeira e eficaz. Nas páginas finais, acompanhamos
a doença terminal do senhor Silva e ouvimos a sua confissão ao amigo Américo: "precisava deste resto de solidão para aprender sobre este resto de companhia,
este resto de vida, américo, que eu julguei já ser um excesso, uma aberração,
deu-me estes amigos e eu que nunca percebi a amizade, nunca esperei nada da
solidariedade, apenas da contingência e da coabitação”.
Os dois amigos reconhecem ser privilegiados porque ao contrário dos peixes que têm três segundos de memória e por isso conseguem passar uma vida inteira dentro de um aquário exíguo como se a cada novo instante conhecessem um lugar novo – o homem pode ter essa capacidade de explosão fulgurante e esse assombro perante novas coisas, acumulando consigo as lembranças de cada manifestação anterior de vida, numa sedimentação de vida plena, completa e integra, mesmo (e principalmente) com todas as suas ausências inerentes.
Os dois amigos reconhecem ser privilegiados porque ao contrário dos peixes que têm três segundos de memória e por isso conseguem passar uma vida inteira dentro de um aquário exíguo como se a cada novo instante conhecessem um lugar novo – o homem pode ter essa capacidade de explosão fulgurante e esse assombro perante novas coisas, acumulando consigo as lembranças de cada manifestação anterior de vida, numa sedimentação de vida plena, completa e integra, mesmo (e principalmente) com todas as suas ausências inerentes.