segunda-feira, 1 de junho de 2015

Medeia - vozes

Autor: Christa Wolf
Título: Medeia vozes
Género: Romance
Editora: Cotovia
1996
204 páginas







“Talvez haja sempre, para aqueles que têm paciência e sabem esperar, um ganho em cada perda, uma alegria em cada sofrimento […] de todas as alegrias simples, afinal são sempre as únicas que duram. E eu, para onde irei? Haverá um mundo, um tempo, com lugar para mim? Ninguém a quem possa perguntar. É esta a resposta”
Voz de Medeia

Resumo: A alemã Crista Wolf (1929-2011) foi escritora, ensaísta, crítica literária mas também activista em movimentos de emancipação do género e acompanhou ainda de perto o processo evolutivo da ex-RDA por acreditar, convictamente, no papel preponderante do indivíduo nas construções históricas e sociais. Nesse sentido, as mulheres são o centro e o catalisador das suas narrativas, ganham força quando devoradas por convulsões interiores e são o móbil de movimentações de poder.
A autora afirmou numa entrevista à Le Magazine Littéraire que “ceux qui ont réellement perdu quelque chose m’intéressent énormément, et comment ils essaient de s’en sortir", por isso se entende que este romance, apesar das ressonâncias de Séneca e de Eurípides, transponha e reinvente as suas matrizes clássicas para se converter num romance contemporâneo. Na verdade, esta Medeia de Wolf, com todas as suas vozes, representa estas minorias desprezadas, seja dos Turcos da Alemanha, seja dos descendentes dos Africanos na Europa ou ainda dos Judeus (vide a este propósito teóricos como Margart Atwood, David. R. Slavitt). Invoquemos as palavras em epígrafe do romance de uma outra ensaísta alemã, Elisabeth Lenk, que nos ajuda a perceber de que forma estas heranças culturais são recebidas: "anacronia não significa as épocas estarem indiferentemente umas ao lado das outras mas sim contidas umas dentro das outras como as bonecas russas onde as paredes do tempo convivem e se rejuvenescem". Assim, estas vozes são acima de tudo uma reinvenção contemporânea do topos clássico do poder e da forma como ele actua sobre a mulher, numa intriga amorosa nunca desvinculada de um jugo político e de dominação, reflectindo cruamente como actua o poder no comportamento humano quando se está no lado oprimido.
Surpreendentemente os traços vingativos e bárbaros da Medeia Euripidiana atenuam-se neste romance onde vemos uma mulher que ama os filhos – Medo e Feres - natural da Cólquida e que foge para Corinto por não se conseguir ajustar à sua terra perdida e corrupta. No entanto, encontra exactamente os mesmos traços de arrogância e medo no rosto do rei Creonte. Não há, por isso, surpresas no que toca o mais torpe e vil da natureza humana, quando visceralmente tomada pela ambição de poder sobre o outro.
Pela voz de Medeia vemos uma mulher que se dá desprotegidamente ao homem que ama, Jasão: “era uma confissão que não esperava dele. Sentei-me a seu lado na esteira, peguei-lhe nas mãos que apertavam as fontes, comecei a acaricia-lo na testa, no rosto, nos ombros, na convinha sensível sobre as clavículas, anda, disse ele em tom suplicante, eu deitei-me a seu lado, conheço o seu corpo, sei como espicaçar-lhe o desejo, fechou os olhos e entregou-se às suas fantasias, onde eu nunca entrava. Sim, sim, sim, Medeia, assim mesmo” (p.28). Por seu lado, a voz de Acamante faz um enquadramento temporal e afirma: “os tempos vão ficando cada vez maiores à medida que nos afastamos deles, é normal e é igualmente absurdo querermos ficar agarrados a esses grandes tempos passados. Mas então a que é que um homem se há-de agarrar? A Medeia?” Este astrónomo do rei faz ainda uma chamada de consciência para a tomada de decisões e lembra que tudo depende daquilo que consideramos útil, bom e correcto. Na verdade, Medeia sempre se recursara a aceitar uma premissa importante: “o que é útil não é necessariamente bom e é insensato partirmos do princípio de que as pessoas ficariam melhores se lhes dissessem a verdade sobre si próprias, quando isso acontece elas ficam desanimadas e obstinadas, tornam-se ingovernáveis.” (p 111). Nenhuma mentira é grosseira o bastante para que as pessoas não acreditem nela, se ela corresponder exactamente ao seu secreto desejo de nela acreditar.
À medida que vão entrando ordenadamente em cena todas estas vozes - Medeia, Jasão (argonauta, comandante da “Argos”), Agámeda (discípula de Medeia), Acamante (primeiro astrónomo do rei Creonte), Glauce (filha do rei Creonte e da mulher Mérope), Leucon (2º astrónomo do rei Creonte), Medeia, Jasão e por último novamente Medeia – vai-se construindo um caleidoscópio, uma circularidade no romance e uma multiplicidade de perspectivas sobre o mesmo fenómeno. Apesar de Medeia ser votada ao exílio é-lhe inculcado sempre um estatuto de vítima das forças políticas, das vontades imponderáveis dos homens, das vicissitudes e contingências do destino.
A autora nessa mesma entrevista à Le Magazine Littéraire legitima esta Medeia e contradiz alguns críticos, que a acusam de destruir a utopia, porque de facto quando esta mulher, no fim do romance, lança uma maldição a todos os que a humilharam e a votaram à solidão e ausência do mundo espelha naquele exacto momento a vitória humana através da sobrevivência e da resignação, tão ao gosto da filosofia cínica, que a partir do século XIX se pauta pela descrença na sinceridade e na bondade das motivações humanas. Medeia despreza as convenções sociais precisamente para sublinhar a frivolidade destas e a sua última saída de cena é feita pelo processo de superioridade teatral Deus ex machina, com o eco das suas palavras: “nem sempre nos agrada aquilo que é necessário mas uma coisa assimilei de forma indelével, que as obrigações do meu lugar me obrigam a decidir, não por razões de agrado pessoal mas em função de valores mais altos.” (p.112)