Autor: Christa Wolf
Título: Medeia vozes
Género: Romance
Editora: Cotovia
1996
204
páginas
“Talvez haja
sempre, para aqueles que têm paciência e sabem esperar, um ganho em cada perda,
uma alegria em cada sofrimento […] de todas as alegrias simples, afinal são
sempre as únicas que duram. E eu, para onde irei? Haverá um mundo, um tempo,
com lugar para mim? Ninguém a quem possa perguntar. É esta a resposta”
Voz de Medeia
Resumo:
A alemã Crista Wolf (1929-2011) foi escritora,
ensaísta, crítica literária mas também activista em movimentos de emancipação do
género e acompanhou ainda de perto o processo evolutivo da ex-RDA por acreditar,
convictamente, no papel preponderante do indivíduo nas construções históricas e
sociais. Nesse sentido, as mulheres são o centro e o catalisador das suas
narrativas, ganham força quando devoradas por convulsões interiores e são o móbil
de movimentações de poder.
A autora afirmou numa entrevista
à Le Magazine Littéraire que “ceux
qui ont réellement perdu quelque chose m’intéressent énormément, et comment ils
essaient de s’en sortir", por isso se entende que este romance, apesar das
ressonâncias de Séneca e de Eurípides, transponha e reinvente as suas
matrizes clássicas para se converter num romance contemporâneo. Na verdade, esta
Medeia de Wolf, com todas as suas vozes, representa estas minorias desprezadas,
seja dos Turcos da Alemanha, seja dos descendentes dos Africanos na Europa ou
ainda dos Judeus (vide a este propósito teóricos como Margart Atwood, David. R.
Slavitt). Invoquemos as palavras em epígrafe do romance de uma outra ensaísta alemã, Elisabeth
Lenk, que nos ajuda a perceber de que forma estas heranças culturais são
recebidas: "anacronia não significa as épocas estarem indiferentemente umas ao
lado das outras mas sim contidas umas dentro das outras como as bonecas russas
onde as paredes do tempo convivem e se rejuvenescem". Assim, estas vozes são
acima de tudo uma reinvenção contemporânea do topos clássico do poder e da forma como ele actua sobre a mulher, numa
intriga amorosa nunca desvinculada de um jugo político e de dominação,
reflectindo cruamente como actua o poder no comportamento humano quando se está
no lado oprimido.
Surpreendentemente os traços
vingativos e bárbaros da Medeia Euripidiana atenuam-se neste romance onde vemos
uma mulher que ama os filhos – Medo e Feres - natural da Cólquida e que foge
para Corinto por não se conseguir ajustar à sua terra perdida e corrupta. No entanto,
encontra exactamente os mesmos traços de arrogância e medo no rosto do rei
Creonte. Não há, por isso, surpresas no que toca o mais torpe e vil da
natureza humana, quando visceralmente tomada pela ambição de poder sobre o
outro.
Pela voz de Medeia vemos uma
mulher que se dá desprotegidamente ao homem que ama, Jasão: “era uma confissão
que não esperava dele. Sentei-me a seu lado na esteira, peguei-lhe nas mãos que
apertavam as fontes, comecei a acaricia-lo na testa, no rosto, nos ombros, na
convinha sensível sobre as clavículas, anda, disse ele em tom suplicante, eu
deitei-me a seu lado, conheço o seu corpo, sei como espicaçar-lhe o desejo,
fechou os olhos e entregou-se às suas fantasias, onde eu nunca entrava. Sim,
sim, sim, Medeia, assim mesmo” (p.28). Por seu lado, a voz de Acamante faz um
enquadramento temporal e afirma: “os tempos vão ficando cada vez maiores à
medida que nos afastamos deles, é normal e é igualmente absurdo querermos ficar
agarrados a esses grandes tempos passados. Mas então a que é que um homem se
há-de agarrar? A Medeia?” Este astrónomo do rei faz ainda uma chamada de
consciência para a tomada de decisões e lembra que tudo depende daquilo que
consideramos útil, bom e correcto. Na verdade, Medeia sempre se recursara a
aceitar uma premissa importante: “o que é útil não é necessariamente bom e é
insensato partirmos do princípio de que as pessoas ficariam melhores se lhes
dissessem a verdade sobre si próprias, quando isso acontece elas ficam
desanimadas e obstinadas, tornam-se ingovernáveis.” (p 111). Nenhuma mentira é grosseira
o bastante para que as pessoas não acreditem nela, se ela corresponder exactamente
ao seu secreto desejo de nela acreditar.
À medida que vão entrando ordenadamente
em cena todas estas vozes - Medeia, Jasão (argonauta, comandante da “Argos”),
Agámeda (discípula de Medeia), Acamante (primeiro astrónomo do rei Creonte), Glauce
(filha do rei Creonte e da mulher Mérope), Leucon (2º astrónomo do rei
Creonte), Medeia, Jasão e por último novamente Medeia – vai-se construindo um caleidoscópio,
uma circularidade no romance e uma multiplicidade de perspectivas sobre o mesmo
fenómeno. Apesar de Medeia ser votada ao exílio é-lhe inculcado sempre um estatuto de vítima das forças políticas, das vontades imponderáveis dos homens,
das vicissitudes e contingências do destino.
A autora nessa mesma entrevista à
Le Magazine Littéraire legitima esta
Medeia e contradiz alguns críticos, que a acusam de destruir a utopia, porque
de facto quando esta mulher, no fim do romance, lança uma maldição a todos os
que a humilharam e a votaram à solidão e ausência do mundo espelha naquele
exacto momento a vitória humana através da sobrevivência e da resignação, tão ao
gosto da filosofia cínica, que a partir do século XIX se pauta pela descrença
na sinceridade e na bondade das motivações humanas. Medeia despreza as
convenções sociais precisamente para sublinhar a frivolidade destas e a sua
última saída de cena é feita pelo processo de superioridade teatral Deus ex machina, com o eco das suas
palavras: “nem sempre nos agrada aquilo que é necessário mas uma coisa
assimilei de forma indelével, que as obrigações do meu lugar me obrigam a
decidir, não por razões de agrado pessoal mas em função de valores mais altos.”
(p.112)