Autor: Gonçalo M. Tavares
Título: Uma Viagem à
Índia
Género: Romance em
verso
Editora: Caminho
6ª edição 2010
456 páginas
“Este prosaico poema, antipoema e hiper-poema,
com consciência aguda da sua ficcionalidade, navega e vive entre os ecos de
mil-textos-objecto do nosso imaginário de leitores.”
Eduardo Lourenço
Uma
Viagem à Índia
não é uma epopeia que engrandece ou amplifica feitos históricos, não é a
aventura de superação e de conquista de um herói, é antes o confronto do Homem com
as suas falibilidades, derrogando utopias e ambições. Ao longo de dez cantos acompanhamos
a demanda do protagonista, num percurso que não é apenas na horizontal –
Lisboa, Londres, Paris, Praga, Índia, Lisboa - mas é, antes e acima de tudo,
feito na vertical…em queda. O “romance ensina a cair[1]” e
ao mesmo tempo em que se inspira nos clássicos é também assombrado pelo traumático
séc. XX, como uma caixa de ressonância que ecoa o pessimismo, o tédio e
melancolia, reflecte traições e enganos onde dinheiro é o único valor universal.
O
nosso (anti)herói Bloom – tal como o Ulisses de James Joyce – viu a sua vida
destruturada por um duplo homicídio, um que cometeu e outro que sofreu, e
decide por isso viajar à procura de sabedoria através do esquecimento e de uma fuga
com carácter pedagógico. A figura do Ulisses de Homero
opera aqui como um hipertexto, também ele um anti-herói no seu tempo, pelo
carácter odioso dos processos de que se serviu e dos fins que perseguiu. Esta irreligio (não ligação, irreligião) que distancia o herói clássico
do divino é o que caracteriza o herói contemporâneo de Gonçalo M. Tavares.
Lembremos que na Odisseia, Ulisses no entusiasmo da viagem e nos braços de
Circe e Calipso, esquece as obrigações como rei de Ítaca e os seus laços
tornam-se ténues, frágeis, alimentados apenas unilateralmente por Penélope.
Mas Ulisses é também um herói profundamente racional e quando cega e ludibria a
força bruta do Ciclope põe termo à era dos gigantes e dá início à era do Homem
ávido, curioso por (se) conhecer (n)o mundo, tantas vezes seguindo os trilhos
da imperfeição, do declínio e da morte, sinais da fragilidade dos heróis mas
também da sua humanidade.
Em pleno século XXI vivemos nas
intermitências destes topoi clássicos - viagem e regresso - mas desta vez não por espaços físicos ou por mares nunca antes
navegados mas por espaços íntimos e interiores nesta ambivalência incessante
entre a memória e o esquecimento. Sabemos hoje o que já pressentiam os heróis
da Antiguidade: não viajamos para nenhum paraíso e todas as viagens são sempre
um regresso ao passado de onde nunca saímos. Esta é a genealogia clássica do
herói contemporâneo: “não se trata de encontrar a imortalidade mas de dar um
certo valor ao que é mortal” (Canto I, 3). Lancemos por isso um olhar sobre a
fragilidade, o tédio da condição humana e sobre a sua mesquinhez absurda: “é
claro que Bloom também não é uma obra-prima da ética. Não sendo ladrão nem um
cabrão traiçoeiro, também não é santo. Tinha até os seus segredos bem negros,
mas ainda não é tempo de os revelar” (Canto I, 78). Tal como Ulisses, Bloom
também se inebria em lirismos e deixa-se deleitar pela hospitalidade dos
cheiros, dos sons e das raparigas bonitas, que perdem a áurea de sensualidade
para se tornarem mais lascivas e cruas. O nosso herói contemporâneo relembra a
tradição ampliando todos os seus traços: “sabe que fora do nosso país, as
mulheres recebem-nos como se salvassem um náufrago” (Canto II, 76). Tal como na
vida de Ulisses e epónima de Penélope, Bloom tinha uma entre as mulheres, Mary:
“além de tranquila, ela utilizava a memória para se recordar de mim quando
estava longe”.
Estas aventuras de Bloom
conduzem-nos pelos labirintos intertextuais da epopeia clássica e narram o
humanismo de um herói que falha, vinga e sofre com todas as suas
vulnerabilidades. Um herói moderno pode ser frágil e este herói contemporâneo é demiurgo e interfere na sua própria
mudança porque “até o imutável se não mudar será empurrado” (Canto VIII, 31).
Bloom traçou uma viagem para o outro lado do mundo para fugir às memórias mas
acabou por ser conduzido para o outro lado de si próprio. Terá aprendido mais
em movimento ou quando parou? O tédio e a melancolia do nosso herói nascem da
consciência aguda de que “o pior sítio para estar vivo é entre aquilo que um
dia exige e aquilo que o eterno promete. No meio, eis o pior sítio”. (Canto X,
104).
Entrevista
de Pedro Mexia a Gonçalo M. Tavares no Público a 27/10/2010 : http://www.publico.pt/culturaipsilon/noticia/o-romance-ensina-a-cair-268246?page=-1
[1]Crítica
de Pedro Mexia à Ipsilon:
http://www.publico.pt/culturaipsilon/noticia/anticamoes-1656730