sexta-feira, 1 de maio de 2015

Uma Viagem à Índia

Autor: Gonçalo M. Tavares
Título: Uma Viagem à Índia
Género: Romance em verso
Editora: Caminho
6ª edição 2010

456 páginas





“Este prosaico poema, antipoema e hiper-poema, com consciência aguda da sua ficcionalidade, navega e vive entre os ecos de mil-textos-objecto do nosso imaginário de leitores.”
Eduardo Lourenço


Uma Viagem à Índia não é uma epopeia que engrandece ou amplifica feitos históricos, não é a aventura de superação e de conquista de um herói, é antes o confronto do Homem com as suas falibilidades, derrogando utopias e ambições. Ao longo de dez cantos acompanhamos a demanda do protagonista, num percurso que não é apenas na horizontal – Lisboa, Londres, Paris, Praga, Índia, Lisboa - mas é, antes e acima de tudo, feito na vertical…em queda. O “romance ensina a cair[1]” e ao mesmo tempo em que se inspira nos clássicos é também assombrado pelo traumático séc. XX, como uma caixa de ressonância que ecoa o pessimismo, o tédio e melancolia, reflecte traições e enganos onde dinheiro é o único valor universal. 
O nosso (anti)herói Bloom – tal como o Ulisses de James Joyce – viu a sua vida destruturada por um duplo homicídio, um que cometeu e outro que sofreu, e decide por isso viajar à procura de sabedoria através do esquecimento e de uma fuga com carácter pedagógico. A figura do Ulisses de Homero opera aqui como um hipertexto, também ele um anti-herói no seu tempo, pelo carácter odioso dos processos de que se serviu e dos fins que perseguiu. Esta irreligio (não ligação, irreligião) que distancia o herói clássico do divino é o que caracteriza o herói contemporâneo de Gonçalo M. Tavares. Lembremos que na Odisseia, Ulisses no entusiasmo da viagem e nos braços de Circe e Calipso, esquece as obrigações como rei de Ítaca e os seus laços tornam-se ténues, frágeis, alimentados apenas unilateralmente por Penélope. Mas Ulisses é também um herói profundamente racional e quando cega e ludibria a força bruta do Ciclope põe termo à era dos gigantes e dá início à era do Homem ávido, curioso por (se) conhecer (n)o mundo, tantas vezes seguindo os trilhos da imperfeição, do declínio e da morte, sinais da fragilidade dos heróis mas também da sua humanidade.
Em pleno século XXI vivemos nas intermitências destes topoi clássicos - viagem e  regresso - mas desta vez não por espaços físicos ou por mares nunca antes navegados mas por espaços íntimos e interiores nesta ambivalência incessante entre a memória e o esquecimento. Sabemos hoje o que já pressentiam os heróis da Antiguidade: não viajamos para nenhum paraíso e todas as viagens são sempre um regresso ao passado de onde nunca saímos. Esta é a genealogia clássica do herói contemporâneo: “não se trata de encontrar a imortalidade mas de dar um certo valor ao que é mortal” (Canto I, 3). Lancemos por isso um olhar sobre a fragilidade, o tédio da condição humana e sobre a sua mesquinhez absurda: “é claro que Bloom também não é uma obra-prima da ética. Não sendo ladrão nem um cabrão traiçoeiro, também não é santo. Tinha até os seus segredos bem negros, mas ainda não é tempo de os revelar” (Canto I, 78). Tal como Ulisses, Bloom também se inebria em lirismos e deixa-se deleitar pela hospitalidade dos cheiros, dos sons e das raparigas bonitas, que perdem a áurea de sensualidade para se tornarem mais lascivas e cruas. O nosso herói contemporâneo relembra a tradição ampliando todos os seus traços: “sabe que fora do nosso país, as mulheres recebem-nos como se salvassem um náufrago” (Canto II, 76). Tal como na vida de Ulisses e epónima de Penélope, Bloom tinha uma entre as mulheres, Mary: “além de tranquila, ela utilizava a memória para se recordar de mim quando estava longe”.
Estas aventuras de Bloom conduzem-nos pelos labirintos intertextuais da epopeia clássica e narram o humanismo de um herói que falha, vinga e sofre com todas as suas vulnerabilidades. Um herói moderno pode ser frágil e este herói contemporâneo é demiurgo e interfere na sua própria mudança porque “até o imutável se não mudar será empurrado” (Canto VIII, 31). Bloom traçou uma viagem para o outro lado do mundo para fugir às memórias mas acabou por ser conduzido para o outro lado de si próprio. Terá aprendido mais em movimento ou quando parou? O tédio e a melancolia do nosso herói nascem da consciência aguda de que “o pior sítio para estar vivo é entre aquilo que um dia exige e aquilo que o eterno promete. No meio, eis o pior sítio”. (Canto X, 104).

Entrevista de Pedro Mexia a Gonçalo M. Tavares no Público a 27/10/2010 : http://www.publico.pt/culturaipsilon/noticia/o-romance-ensina-a-cair-268246?page=-1